Se nos detivemos na obra de Sinésio, discípulo da mártir neoplatônica Hipátia e depois convertido ao cristianismo,[Sobre a figura de Sinésio como mediador entre cristianismo e neoplatonismo, veja-se H.-I. MARROU. “Sinésio di Cirece e il neoplatonismo alessandrino”, em: Il conflito fra paganesimo e cristianesimo nel século IV. Torino, 1968.] isso se deve ao fato de já se encontrar formulado, neste pequeno e curioso livro, pelo menos em seus traços essenciais, o conjunto doutrinal que, identificando a imagem interior da fantasmologia aristotélica com o sopro quente, veículo da alma e da vida, da pneumatologia estoico-neoplatônica, alimentará tão fecundamente a ciência, a especulação e a poesia do renascimento intelectual do século XI até o século XIII. A síntese que disso resulta é tão marcante que a cultura europeia desse período poderia ser definida com razão como uma pneuma–fantasmologia, em cujo âmbito, que circunscreve ao mesmo tempo uma cosmologia, uma fisiologia, uma psicologia e uma soteriologia, o sopro que anima o universo, circula nas artérias e fecunda o esperma, é o mesmo que, no cérebro e no coração, recebe e forma os fantasmas das coisas que vemos, imaginamos, sonhamos e amamos; como corpo sutil da alma, ele é, além disso, o intermediário entre a alma e a matéria, o divino e o humano, e, como tal, permite que se expliquem todas as influências entre corpóreo e incorpóreo, desde a fascinação mágica até às inclinações astrais.
Na transmissão deste conjunto doutrinal, cabe papel de destaque à medicina. O renascimento da pneumatologia no século XI começa com a tradição em latim, por obra de Constantino Africano, com o Uber regius de Ali ibn Abbas al-Magiusi, e alcança um primeiro ápice por volta da metade do século XII, com a tradução do De differentia animae et spiritus, do médico árabe Costa ben Luca. Nesse espaço de tempo, a fisiologia pneumática dos médicos exerceu uma influência profunda sobre toda a cultura contemporânea.
É necessário que o corpo — lê-se no De motu cordis, do médico Alfredo o Inglês – cuja matéria é sólida e obtusa, e a alma, que é [163] de natureza sutilíssima e incorpórea, estejam reunidos por uma espécie de meio que, participando da natureza de ambos, una, em um único pacto, uma variedade tão discorde. Se tal meio fosse de natureza totalmente incorpórea, não se distinguiria da alma; se estivesse submetido em tudo às leis da matéria, não diferiria da obtusidade do corpo. E, pois, necessário que não seja nem totalmente sensível, nem totalmente incorpóreo… Este vínculo dos extremos e órgão do movimento corpóreo é chamado espírito… [Des Alfred von Sareshel Schrift de motu cordis. Münster, 1923, p. 37 et seq.]
Enquanto, para alguns autores (entre eles, o citado Alfredo e a sua fonte, Costa ben Luca), há duas espécies de espírito, o vital e o animal, para a maioria dos médicos elas são três: o espírito natural. que tem origem no fígado (“aquela parte onde se ministra a nossa nutrição”, nas palavras de Dante), a partir das exalações do sangue que aí é purificado e digerido; do fígado ele passa, através das veias, para todos os membros do corpo, aumentando o seu vigor natural; o espírito vital que tem origem no coração e se difunde, através das artérias, por todo o corpo, vivificando-o; o espírito animal, que nasce nos recintos do cérebro de uma purificação do espírito vital. A partir do tálamo esquerdo do coração, o espírito vital sobe para o cérebro através da artéria, passa através de suas três celas, e ali, “por virtude da fantasia e da memória, se torna mais puro e digerido (digestior purgatiorque) e se transforma em espírito animal” [Ibidem, p. 45]. A partir do cérebro, o espírito animal enche os nervos e se irradia por todo o corpo, produzindo a sensibilidade e o movimento. A partir da cela fantástica, ramifica-se o nervo ótico, que, ao bifurcar-se, alcança os olhos. Pela cavidade desse nervo passa o espírito animal, que aí se torna ainda mais sutil [“…Et cum altior et subtilior sit spiritus qui ad oculos dirigitur…” [“…E sendo o espírito que se dirige aos olhos mais elevado e sutil…”] (JOÃO DE SALISBURY. De septem septenis, em: Patrologia latina, 199, 952). Este é o espírito sutil dos estilo-novistas (cf. GUIDO CAVALCANTI. “E quel sottile spirito ehe vede” em: Rimatori dei dolce stil novo, op. at, p. 38; “Pegli occhi fere un spirito sottile”, em ibidem, p. 39).], [164] e, segundo uma teoria, sai dos olhos como espírito visual, se dirige até o objeto através do ar, que para ele cumpre o papel de “suplemento” e, tendo-se informado de sua figura e de sua cor, volta ao olho e daí para a cela fantástica; de acordo com outra teoria, o espírito visual, sem sair do olho, recebe através do ar a marca do objeto e a transmite para o espírito fantástico. Mecanismo análogo vale para o ouvido e para os outros sentidos. Na cela fantástica, o espírito animal ativa as imagens da fantasia, na cela memorial produz a memória e, na logística, a razão.
Todo o processo psicológico descrito no capítulo anterior é traduzido e “espiritualizado” nos termos desta circulação pneumática. E eis como se apresenta a psicologia de Avicena, que expusemos anteriormente em termos puramente estáticos, uma vez que tenha sido recolocada no seu contexto “espiritual” essencial:
A similitude (da coisa) une-se à parte do espírito que traz consigo a virtude visual… e penetra no espírito que se encontra no primeiro ventrículo do cérebro e se imprime neste espírito, que traz consigo a virtude do senso comum… a partir daí, o senso comum transmite a forma àquela parte do espírito que está próxima do espírito, que o traz consigo e imprime aí essa forma, e a põe assim na virtude formal, que é a imaginativa… [165] depois, a forma que está na imaginação penetra no ventrículo posterior e se une com o espírito que traz consigo a virtude estimativa através do espírito, que traz consigo a virtude imaginativa que, nos homens, se chama cogitativa, e a forma que estava na imaginativa imprime-se no espírito da virtude estimativa…[AVICENA. De anima, III, 8.]
Agora já temos possibilidade de entender, sem dificuldade, a teoria segundo a qual está no coração a sede primeira da sensibilidade e da imaginação, mas estas se atuam no cérebro. O espírito vital realmente tem sua origem no coração, e é este mesmo espírito que, refinado e purificado, sobe até ao cérebro e se converte em espírito animal. Uma única corrente pneumática circula no organismo, e nela unifica-se dinamicamente o que só estaticamente pode ser considerado dividido.
Além disso, o espírito animal é naturalmente inerente ao esperma: irradiando-se pelo corpo, chega aos testículos, converte-se em “suco lácteo e tenaz e, realizado o coito, sai para o exterior” [Galeno ascriptus liber de compagine membrorum, cap. XI (em Operum, op. cit, p. 332).], onde, unindo-se ao esperma feminino, forma o embrião e recebe os influxos astrais. [AgambenE:163-166]