eremia

EREMIA = DESERTO

VIDE: koinobion, askesis, monos, monachos

EVANGELHO DE JESUS: Tentações de Jesus; João Batista; Maná; Serpente de Bronze Mc 1:35


Marie Madeleine Davy: O DESERTO INTERIOR
Ele permanecia retirado
em lugares desertos, e orava (Lc 5,16).

A magnificência do deserto, celebrada na Bíblia, ilumina os sinóticos translucidamente. As suas referências ao deserto são raras. Fazem alusão a ele a propósito de Cristo, quando se retirou da multidão para orar, ou quando, levado pelo Espírito, foi tentado pelo diabo. João Batista, que batizou Jesus com o batismo de água, era homem do deserto e se tornou o modelo dos eremitas. O desconhecimento da vida de Cristo, com exceção dos episódios concernentes ao seu nascimento, à sua presença no templo, ao seu ensinamento e a sua morte, não nos permite fazer alusão a detalhes de sua existência antes de seus anos de pregação. Viveu ele no deserto? É possível. Participou da existência dos essênios? Não sabemos. Em todo caso, é difícil pensar que Jesus permanecesse em sua família. Todo judeu, a menos que pertencesse a alguma seita que exigisse o celibato, se casava ainda jovem, com cerca de dezoito anos, e devia procriar. Teria ele sido um discípulo de João Batista? A mensagem deste homem, que se dirigira para o deserto da região montanhosa de Judá, tinha sido anunciada por Isaías:

Uma voz clama: “No deserto, abri
um caminho para YHWH;
na estepe, aplainai
uma vereda para o nosso Deus! (Is 40,3).

Essa é a vocação do eremita de fora e de dentro; ele prepara o caminho para a palavra do Eterno, palavra que não cessa de nascer no coração dos homens.

Aos quarenta anos passados pelo povo de Israel no deserto, correspondem os quarenta dias de Jesus no deserto, com os quais têm alguma semelhança os quarenta dias durante os quais Cristo apareceu aos seus apóstolos, antes da ascensão, falando-lhes do Reino de Deus (At 1,3). No deserto, Cristo jejuou; ao sentir fome, o diabo o convidou a transformar pedras em pães; em seguida transportou-o para pontos elevados, nos quais pediu-lhe que se prostrasse. O diabo queria que Jesus o adorasse, mas Jesus não caiu nessa tentação. Os israelitas, ao contrário, fizeram, no deserto, um bezerro de ouro e o veneraram, porque Moisés tardava em descer da montanha, onde se entretinha com o Eterno.

Traços importantes diferenciam o deserto do Antigo Testamento do deserto do Novo. No primeiro, Deus fala, donde a importância do deserto criado pelo Eterno como a terra e o mar. No segundo, o deserto se torna uma espécie de “purgatório”, um lugar de despojamento, de purificação e de combate contra os demônios (e isso em parte já o era antes). Para os cristãos, Cristo é Palavra do Pai; para os que o reconhecem, a palavra do Eterno se torna perceptível através de Cristo.

Essas diferenças, que caracterizam a noção de deserto, se estendem aos comportamentos em relação ao mundo, à sexualidade e à solidão. Para os judeus, o mundo não era mau. Não se devia, portanto, fugir dele. O importante era sacralizar a terra, preparando-a para a vinda do Messias. A existência era amada, e a sexualidade tinha papel primordial: a presença divina estava próxima dos que tinham filhos. O homem sozinho era comparável a uma metade levada à deriva, qual continente separado de sua outra parte; por isso, não se casar teria sido mutilação, enfermidade e até falta de unidade. Era normal que as águas superiores se comunicassem com as águas inferiores, e o céu com a terra etc. O homem adquiria sua unidade encontrando sua parceira. Por isso, a solidão do homem não era uma bênção, mas um entrave ao seu desabrochar físico e espiritual; até para estudar a Tora era bom que fossem dois.

Para os cristãos, o Messias veio na pessoa de Jesus, e a sua volta está próxima. Não é, pois, aconselhável enraizar-se na vida e ter filhos. Do ponto de vista da sexualidade, o papel de Paulo foi predominante. A importância da virgindade e da continência se explica, em grande parte, apenas por influência de Paulo. Daí a atitude perante o mundo passou a ser de afastamento e até de recusa.

Se é secundário nas Escrituras do Novo Testamento, o papel do deserto é primordial na vida dos monges e dos leigos. Muitos cristãos escolheram viver no deserto, a título individual, ou optaram pela vida monástica contemplativa. Em relação tanto a uns como a outros, é o caso de se falar em fuga do mundo. Os Padres da Igreja, gregos e latinos, introduziram um ensinamento que devia constituir a tradição. Apesar de ocupados com as heresias e as gnoses, não negligenciaram a vida interior e manifestaram muitas vezes seu amor pelo deserto, insistindo na preeminência da vida monástica.

Jacob Boehme: Pierre Deghaye — DESERTO


Ysabel de Andia: Mystiques d’Orient et d’Occident

A purificação dos ídolos passa pelo deserto, lugar da sede e da morte, onde Deus conduz seu povo, na saída do Egito para o purificar por um longo «êxodo» antes da entrada na terra prometida. E o povo «murmura» que não tem mais as riquezas do Egito. Não há mais «nada», senão Deus. O deserto tem a pureza do monoteísmo: nada mais há, senão Deus. Lugar da sede e da fome, o povo não pode sobreviver se Deus não lhe dá o maná e a água da rocha, esta «rocha» que dirá São Paulo, é o Cristo. Lugar do êxodo, lugar das provações da , lugar da tentação, onde a vaidade dos ídolos se descobre enfim como o Satã que oferece ídolos de desejo. Mas o deserto é também o lugar do carinho divino onde Deus dá tudo «sem intermediário» a seu povo só lhe demandando nEle ter fé.


Diz-se que Brahma não se assemelha a nada no mundo, mas que nada está fora de Brahma. Para ilustrar esta afirmação, Sankara no Atma-Bodha utiliza a imagem do «deserto» (Maru), para nos fazer compreender em que tudo o que existe fora de Brahma não pode existir senão em modo puramente ilusório, como a aparência da água existe no deserto para o viajante com sede, quer dizer como uma simples miragem. «Esta palavra Maru, escreve Guénon, derivada da raiz mri, «morrer», designa toda região estéril, inteiramente desprovida de água, e mais especialmente um deserto de areia, cujo aspecto uniforme pode ser tomado como suporte da meditação, para evocar a ideia de indiferenciação principial.». Se o desrto é um bom suporte à meditação, como certos jardins de pedra japoneses dão uma perfeita ilustração, por outro lado e ao mesmo tempo, a existência no deserto (Maru) é bem a exata situação das ideias e conceitos que nos formamos, não somente a propósito das coisas terrestres, mas igualmente das coisas divinas: pura vacuidade. (Vivenza)