episteme: 1) conhecimento (verdadeiro e científico) (oposto a doxa); 2) um corpo organizado de conhecimento, uma ciência; 3) conhecimento teorético (oposto a praktike e poietike)
1. O materialismo dos pré-socráticos não lhes permitiu distinguir entre tipos de conhecimento; mesmo Heráclito, que insistiu em que o seu logos que está oculto, apenas podia ser compreendido pela inteligência, foi, quando chegou à explicação do noûs, um materialista radical: o conhecimento era a sensação do tipo semelhante-conhece-semelhante (ver homoios). Heráclito aderiu, por certo, à ordem permanente do universo, rodeado como estava por um óbvio processo de mudança, mas os filósofos subsequentes preferiram realçar o elemento da mudança («tudo flui»; ver rhoe), e a consequente falência do conhecimento dos sentidos (ver Platão, Crát. 402a; Aristóteles, Physica VIII, 253b). Um dos que propôs esta denegrição da aisthesis foi Crátilo (ver Aristóteles, Metafísica 1010a) que teve uma influência formativa no jovem Platão (idem 987a).
2. As teorias da percepção sensualista caíram em descrédito, e quando Sócrates descreve este processo no Fédon 96b, não está satisfeito com ele; mas o processo de fato sugere que a distinção entre doxa e episteme era pré-socrática. No contexto do Fédon a diferenciação não parece ser mais do que uma distinção entre os níveis da convicção; mas o verdadeiro pai da distinção radical que aparece de Platão em diante é Parmênides, pré-socrático não preocupado em «salvar os fenômenos», cujo poema opõe ao mundo da percepção e da opinião o reino do puro ser e do puro pensamento (noema, frg. 8, versos 34-36, 50-51). Este é também o reino dos eide de Platão, imutáveis, eternos, a base do verdadeiro conhecimento (episteme). Eidos e episteme estão ligados desde a sua primeira e implícita aparição no Ménon (como corolário da anamnesis), através de um argumento semelhante no Fédon 75b-76 que insiste fortemente em que o verdadeiro conhecimento (episteme) das Formas não pode vir através dos sentidos e assim devemos nascer com ele. A afirmação mais ampla da disposição episteme/eide vs. doxa/aistheta é dada na Republica 476a-480a, e ilustrada no sequente Diagrama da Linha (509d-511e) e na Alegoria da Caverna (514a-521b). A sensação (aisthesis) reafirma a sua pretensão de ser conhecimento verdadeiro no Teeteto 186d; isto é rejeitado tal como o alternativo «verdadeiro juízo acompanhado de uma explicação» (logos), ibid. 187b, mas também isto é classificado e criticado (ibid. 201c-210d). A resposta desenrola-se na sequela, o Sofista: o único conhecimento verdadeiro é um conhecimento dos eide e o seu método é dialético (dialektike). Mesmo numa obra posterior como o Timeu a distinção entre episteme e doxa e os seus objetos diferenciados, é salientada (29b-d).
3. Os eide platônicos transcendentes são substituídos pela variedade (ver eidos) imanente de Aristóteles, e a mudança é acompanhada por uma substituição no objeto da episteme. Para Aristóteles o verdadeiro conhecimento científico é um conhecimento de causas (aitia), que são necessariamente verdadeiras (Anal. post. I, 76b), enquanto a opinião (doxa) é acerca do contingente (symbebekos, ibid. I, 88b). A episteme é conhecimento demonstrativo (ver apodeixis, ibid. I, 71b), silogístico, e o conhecimento dos sentidos é uma condição necessária para ela (ibid. I, 81a-b; ver epagogé). Isto está tudo num contexto lógico; as causas supramencionadas são as premissas de um silogismo e as causas da conclusão. Aristóteles toma a episteme de um ponto de vista ontológico no início da Metafísica; também aqui a episteme é um conhecimento de causas, mas estas aitia são causas do ser, e o conhecimento das causas supremas é o tipo mais alto de episteme, a sabedoria (sophia); para episteme como atividade mental, ver noesis.
4. Na Metafísica 1025b-1026a Aristóteles dá a sua decomposição de episteme no sentido de um corpo organizado de conhecimento racional com o seu próprio objeto; o alinhamento é o seguinte:
episteme: praktike (ver praxis), poietike (ver techne), theoretike (ver theoria)
theoretike: mathematike (ver mathematika), physike (ver choriston), theologike (ver theologia)
Para uma outra divisão posterior, ver philosophia; para a «divisão das ciências» platônicas, ver techne.
5. Aristóteles usa com frequência apenas episteme para episteme theoretike em contraste com a «ciência» prática ou produtiva, v. g. Ethica Nichomacos VI, 1139b; ver praxis, techne. (FEPeters)
episteme — ciência, conhecimento, saber
Tg 3:13 — Quem dentre vós é sábio e entendido (epistemon)? Mostre pelo seu bom procedimento as suas obras em mansidão de sabedoria.
Citações dos Padres — nosso site francês
Arcângelo Buzzi – “Ensaios de Filosofia”
Num primeiro plano, por certo perceptivelmente o mais fértil, a existência humana se realiza no saber da experiência sensível. Para realizar-se nessa sabedoria, a existência humana busca aprimorar-se numa forma de recebimento da realidade, que chamamos de sensação (aisthesis). No sabor da sensação a existência humana se agita e se intranquiliza no todo de seu ser, e pode decidir-se a só querer a realidade na representação ‘restritiva’ do senso ou do sentimento dos aspectos agradáveis e fugir dos aspectos desagradáveis.
A sensação, porém, mais que agitar a existência humana na busca sentimental do agradável e na fuga do desagradável, é fonte de irrupção da realidade, no sentido de anunciar algo estranho e irredutível ao sentimento. Assim, periciando a sensação, ultrapassando seu senso de agrado ou de desagrado estético e episódico, a existência humana, no embalo do pensamento, pode fazer a passagem para um saber superior (episteme) da realidade e dispor-se a realizá-la a partir desse superior saber. Ao conhecer mais profundamente a realidade, presente mas subtraída à sensação, a existência humana se auto-potencializa e pode realizar-se num plano ou numa estação de paz superior ao agitado tumulto dos sentimentos. Nessa estação de conhecimento (episteme) sábio da realidade, a existência humana, no turbilhão da sensação, é tocada pelo sentimento da liberdade. Melhor diríamos, a sensação se transforma em liberdade e jovialidade, isto é, na mais ampla e imperiosa disposição (simpatia) da existência humana de deixar-se atrair por um fenômeno real retraído e totalmente fora de nosso poder e projetos de criação.
Frei Hermógenes Harada – “Ensaios de Filosofia
Usualmente entendemos a utilidade de uma coisa como serventia, no modo de meio para um fim, lançado de antemão, como objetivo de um plano. Diz-se que é útil se instrumento do projeto de planejamento. Antes, porém, de todos os nossos projetos e planejamentos há o uso. Uso, na acepção de usos e costumes. Costumamos dizer a utilidade da totalidade dos usos e costumes na expressão “no uso e na vida”. Queremos com isso indicar o nosso habitar a Terra dos Homens. Assim, “no uso e na vida” refere-se a uma presença prévia, cotidiana e média, imperceptível, anônima e indeterminada, por ser imensidão e profundidade de envolvimento pré-jacente, a partir e dentro da qual surgem, crescem, se consumam e sucumbem multifáries planos e projetos que nos ocupam e nos preocupam. Todos nós, nos nossos afazeres, estamos em uso e em vida, como que de antemão sob o toque de um envio imenso, profundo e oculto, no qual somos usados e nos usamos, tornando-nos todas as coisas. Talvez possamos chamar esse toque do uso de utilidade originária de todas as coisas. Todas as nossas ações, o know-how das nossas atividades, recebem por fim sua orientação e a possibilidade de sua criatividade renovada, a partir dessa utilidade original. E o a partir de onde que constitui o sentido do ser de nós mesmos e do nosso mundo. Essa orientação prévia que vem do toque e envio do uso originário se chama em Eckhart saber. Trata-se aqui do sabor anterior, do a priori, que nos abre todo um mundo no seu surgir livre, como lance da possibilidade de ser. Todas as referências de um saber assim a priori se torna um dever, uma responsabilização da tarefa para o Homem. Por isso diz Mestre Eckhart: “Tu deves saber que”. E o que devemos assim saber com responsabilidade de ser é que: o toque desvelante da possibilidade de ser da epocalidade medieval se chama deixar (v. wou-wei).
episteme: 1) conhecimento (verdadeiro e científico) (oposto a doxa); 2) um corpo organizado de conhecimento, uma ciência; 3) conhecimento teorético (oposto a praktike e poietike)
1. O materialismo dos pré-socráticos não lhes permitiu distinguir entre tipos de conhecimento; mesmo Heráclito, que insistiu em que o seu logos que está oculto, apenas podia ser compreendido pela inteligência, foi, quando chegou à explicação do nous, um materialista radical: o conhecimento era a sensação do tipo semelhante-conhece-semelhante (ver homoios). Heráclito aderiu, por certo, à ordem permanente do universo, rodeado como estava por um óbvio processo de mudança, mas os filósofos subsequentes preferiram realçar o elemento da mudança («tudo flui»; ver rhoe), e a consequente falência do conhecimento dos sentidos (ver Platão, Crát. 402a; Aristóteles, Physica VIII, 253b). Um dos que propôs esta denegrição da aisthesis foi Crátilo (ver Aristóteles, Metafísica 1010a) que teve uma influência formativa no jovem Platão (idem 987a).
2. As teorias da percepção sensualista caíram em descrédito, e quando Sócrates descreve este processo no Fédon 96b, não está satisfeito com ele; mas o processo de fato sugere que a distinção entre doxa e episteme era pré-socrática. No contexto do Fédon a diferenciação não parece ser mais do que uma distinção entre os níveis da convicção; mas o verdadeiro pai da distinção radical que aparece de Platão em diante é Parmênides, pré-socrático não preocupado em «salvar os fenômenos», cujo poema opõe ao mundo da percepção e da opinião o reino do puro ser e do puro pensamento (noema, frg. 8, versos 34-36, 50-51). Este é também o reino dos eide de Platão, imutáveis, eternos, a base do verdadeiro conhecimento (episteme). Eidos e episteme estão ligados desde a sua primeira e implícita aparição no Ménon (como corolário da anamnesis), através de um argumento semelhante no Fédon 75b-76 que insiste fortemente em que o verdadeiro conhecimento (episteme) das Formas não pode vir através dos sentidos e assim devemos nascer com ele. A afirmação mais ampla da disposição episteme/eide vs. doxa/aistheta é dada na Republica 476a-480a, e ilustrada no sequente Diagrama da Linha (509d-511e) e na Alegoria da Caverna (514a-521b). A sensação (aisthesis) reafirma a sua pretensão de ser conhecimento verdadeiro no Teeteto 186d; isto é rejeitado tal como o alternativo «verdadeiro juízo acompanhado de uma explicação» (logos), ibid. 187b, mas também isto é classificado e criticado (ibid. 201c-210d). A resposta desenrola-se na sequela, o Sofista: o único conhecimento verdadeiro é um conhecimento dos eide e o seu método é dialético (dialektike). Mesmo numa obra posterior como o Timeu a distinção entre episteme e doxa e os seus objetos diferenciados, é salientada (29b-d).
3. Os eide platônicos transcendentes são substituídos pela variedade (ver eidos) imanente de Aristóteles, e a mudança é acompanhada por uma substituição no objeto da episteme. Para Aristóteles o verdadeiro conhecimento científico é um conhecimento de causas (aitia), que são necessariamente verdadeiras (Anal. post. I, 76b), enquanto a opinião (doxa) é acerca do contingente (symbebekos, ibid. I, 88b). A episteme é conhecimento demonstrativo (ver apodeixis, ibid. I, 71b), silogístico, e o conhecimento dos sentidos é uma condição necessária para ela (ibid. I, 81a-b; ver epagogé). Isto está tudo num contexto lógico; as causas supramencionadas são as premissas de um silogismo e as causas da conclusão. Aristóteles toma a episteme de um ponto de vista ontológico no início da Metafísica; também aqui a episteme é um conhecimento de causas, mas estas aitia são causas do ser, e o conhecimento das causas supremas é o tipo mais alto de episteme, a sabedoria (sophia); para episteme como atividade mental, ver noesis.
4. Na Metafísica 1025b-1026a Aristóteles dá a sua decomposição de episteme no sentido de um corpo organizado de conhecimento racional com o seu próprio objeto; o alinhamento é o seguinte:
episteme: praktike (ver praxis), poietike (ver techne), theoretike (ver theoria)
theoretike: mathematike (ver mathematika), physike (ver choriston), theologike (ver theologia)
Para uma outra divisão posterior, ver philosophia; para a «divisão das ciências» platônicas, ver techne.
5. Aristóteles usa com frequência apenas episteme para episteme theoretike em contraste com a «ciência» prática ou produtiva, v. g. Ethica Nichomacos VI, 1139b; ver praxis, techne. (FEPeters)
episteme: 1) conhecimento (verdadeiro e científico) (oposto a doxa); 2) um corpo organizado de conhecimento, uma ciência; 3) conhecimento teorético (oposto a praktike e poietike)
1. O materialismo dos pré-socráticos não lhes permitiu distinguir entre tipos de conhecimento; mesmo Heráclito, que insistiu em que o seu logos que está oculto, apenas podia ser compreendido pela inteligência, foi, quando chegou à explicação do nous, um materialista radical: o conhecimento era a sensação do tipo semelhante-conhece-semelhante (ver homoios). Heráclito aderiu, por certo, à ordem permanente do universo, rodeado como estava por um óbvio processo de mudança, mas os filósofos subsequentes preferiram realçar o elemento da mudança («tudo flui»; ver rhoe), e a consequente falência do conhecimento dos sentidos (ver Platão, Crát. 402a; Aristóteles, Physica VIII, 253b). Um dos que propôs esta denegrição da aisthesis foi Crátilo (ver Aristóteles, Metafísica 1010a) que teve uma influência formativa no jovem Platão (idem 987a).
2. As teorias da percepção sensualista caíram em descrédito, e quando Sócrates descreve este processo no Fédon 96b, não está satisfeito com ele; mas o processo de fato sugere que a distinção entre doxa e episteme era pré-socrática. No contexto do Fédon a diferenciação não parece ser mais do que uma distinção entre os níveis da convicção; mas o verdadeiro pai da distinção radical que aparece de Platão em diante é Parmênides, pré-socrático não preocupado em «salvar os fenômenos», cujo poema opõe ao mundo da percepção e da opinião o reino do puro ser e do puro pensamento (noema, frg. 8, versos 34-36, 50-51). Este é também o reino dos eide de Platão, imutáveis, eternos, a base do verdadeiro conhecimento (episteme). Eidos e episteme estão ligados desde a sua primeira e implícita aparição no Ménon (como corolário da anamnesis), através de um argumento semelhante no Fédon 75b-76 que insiste fortemente em que o verdadeiro conhecimento (episteme) das Formas não pode vir através dos sentidos e assim devemos nascer com ele. A afirmação mais ampla da disposição episteme/eide vs. doxa/aistheta é dada na Republica 476a-480a, e ilustrada no sequente Diagrama da Linha (509d-511e) e na Alegoria da Caverna (514a-521b). A sensação (aisthesis) reafirma a sua pretensão de ser conhecimento verdadeiro no Teeteto 186d; isto é rejeitado tal como o alternativo «verdadeiro juízo acompanhado de uma explicação» (logos), ibid. 187b, mas também isto é classificado e criticado (ibid. 201c-210d). A resposta desenrola-se na sequela, o Sofista: o único conhecimento verdadeiro é um conhecimento dos eide e o seu método é dialético (dialektike). Mesmo numa obra posterior como o Timeu a distinção entre episteme e doxa e os seus objetos diferenciados, é salientada (29b-d).
3. Os eide platônicos transcendentes são substituídos pela variedade (ver eidos) imanente de Aristóteles, e a mudança é acompanhada por uma substituição no objeto da episteme. Para Aristóteles o verdadeiro conhecimento científico é um conhecimento de causas (aitia), que são necessariamente verdadeiras (Anal. post. I, 76b), enquanto a opinião (doxa) é acerca do contingente (symbebekos, ibid. I, 88b). A episteme é conhecimento demonstrativo (ver apodeixis, ibid. I, 71b), silogístico, e o conhecimento dos sentidos é uma condição necessária para ela (ibid. I, 81a-b; ver epagogé). Isto está tudo num contexto lógico; as causas supramencionadas são as premissas de um silogismo e as causas da conclusão. Aristóteles toma a episteme de um ponto de vista ontológico no início da Metafísica; também aqui a episteme é um conhecimento de causas, mas estas aitia são causas do ser, e o conhecimento das causas supremas é o tipo mais alto de episteme, a sabedoria (sophia); para episteme como atividade mental, ver noesis.
4. Na Metafísica 1025b-1026a Aristóteles dá a sua decomposição de episteme no sentido de um corpo organizado de conhecimento racional com o seu próprio objeto; o alinhamento é o seguinte:
episteme: praktike (ver praxis), poietike (ver techne), theoretike (ver theoria)
theoretike: mathematike (ver mathematika), physike (ver choriston), theologike (ver theologia)
Para uma outra divisão posterior, ver philosophia; para a «divisão das ciências» platônicas, ver techne.
5. Aristóteles usa com frequência apenas episteme para episteme theoretike em contraste com a «ciência» prática ou produtiva, v. g. Ethica Nichomacos VI, 1139b; ver praxis, techne. (FEPeters)