Encarnação do Verbo

É permitido pensar, todavia, que a Encarnação cumpre a Revelação de Deus de outro modo além de pelo viés desse contraste, por mais surpreendente que este seja. Não basta lembrar uma última vez que a Encarnação do Verbo não é sua vinda num corpo, mas numa carne? Ou, para dizê-lo de modo mais rigoroso, que sua vinda nesse corpo que alguns viram não era dissociável da vinda da Vida invisível absoluta em seu Verbo? E que é esse Verbo em sua Arquipassibilidade que se fez carne, não dissociável dessa própria carne, semelhante à nossa, destinada a sofrer e a morrer ela também? Desse modo, na Vinda do Verbo em seu corpo visível se encontra sua realidade oculta, a geração eterna do Filho único [376] primogênito na autogeração da Vida absoluta. É a interioridade fenomenológica recíproca do Pai e do Filho que revela a Encarnação. “Não sabes, Felipe, que estou no Pai e que o Pai está em mim?” Visivelmente Felipe tem dificuldade para ver e para compreender o que Cristo lhe diz.


É essa restauração de nossa condição original que Irineu se esforça por explicar, em textos difíceis cuja afirmação constante é, por um lado, a identidade entre a criação bíblica do homem pela insuflação da vida num pedaço de matéria e, por outro lado, a geração joanina da carne no Verbo. “(…) Ele mesmo (o Verbo), nesses últimos tempos, se fez homem, quando ele já estava no mundo e no plano invisível sustentava todas as coisas criadas.” Desse modo, a Encarnação histórica do Verbo num corpo visível tem por objetivo lembrar ao homem que é nesse Verbo que ele próprio foi feito no início à imagem e segundo a semelhança de Deus: no invisível. A encarnação torna manifesta ao homem sua geração invisível. “Nos tempos antigos dizia-se que o homem tinha sido feito à imagem de Deus, mas isso não aparecia, pois o Verbo ainda estava invisível, ele, à imagem de quem tudo tinha sido feito.” É, aliás, essa condição invisível do Verbo que tinha feito o homem perder sua “imagem”, essa autorrevelação da vida que é o Verbo e em que todo Si transcendental é dado a si mesmo em sua geração joanina. Desse modo, [377] segundo o raciocínio de Irineu, quando o Verbo encarna na carne de Cristo, tornando-se visível aos homens no mundo, faz ver a todos que ele é esse Verbo à imagem de que eles foram feitos, torna manifesta sua condição divina. “Mas, quando o Verbo se fez carne, fez aparecer a Imagem em toda a verdade, tornando-se ele próprio isso mesmo que era sua Imagem” — o que quer dizer: quando ele encarnou, mostrou-se aos homens enquanto homem que é a imagem de Deus, mostrou-lhes nesse homem que ele era a Imagem original à imagem da qual o homem tinha sido feito, mostrou-lhes em si o Verbo. Ele lhes disse que como Ele, gerados n’Ele, eles levavam em si esse Verbo que ele próprio era, que eles eram de origem divina. E assim que, graças à Encarnação, o homem estava restabelecido em sua dignidade de filho de Deus. “E ele restabeleceu a semelhança de modo estável tornando o homem plenamente semelhante ao Pai invisível por meio do Verbo doravante visível”. O que dizia a Encarnação do Verbo na condição de um homem era, portanto, ao fim e ao cabo, a geração transcendental de todo Si carnal vivente nesse Verbo, era a verdade transcendental do homem.  (Michel Henry, MHE)