eidos

εἶδος: aparência, natureza constitutiva, forma, tipo, espécie, ideia, aspecto, aspecto essencial

1. Eidos era um termo já bem enraizado e mesmo bastante sofisticado muito antes de ser consagrado por Platão. O seu primeiro significado, e o uso é corrente em Homero, é «aquilo que se vê», «aparência», «forma», normalmente do corpo, e a filosofia pré-socrática continuou a usá-lo neste sentido (ver Empédocles, frgs. 98, 115 e Demócrito, citado em Plutarco, Adv. Col. 1110). Na época de Heródoto o eidos, e o seu cognato a idea que entrara em uso, fora alargado e abstraído no sentido de «propriedade característica» (I, 203) ou «tipo» (I, 94). O uso que Tucídides faz é semelhante (ver III, 81), e num caso (II, 50) ele fala do «eidos da doença», expressão que conduz à expansão do termo em círculos médicos contemporâneos. Aqui eidos/idea tinha aparentemente sido isolado como termo técnico, frequentemente ligado à noção de poder (dynamis), e significando algo mais ou menos como «natureza constitutiva» (ver Hipócrates, V. M. 15, 19; Nat. hom. 2, 5; De arte 2).

2. Seja qual for a interpretação exata dos últimos textos, parece evidente que houve um relacionamento com a forma das coisas que não estava necessariamente ligada à sua aparência exterior (embora a sua conexão com a dynamis sugira que a sua identificação repousava numa consciência dos seus efeitos visíveis), mas antes a alguma espécie de inteligibilidade interior (De arte 2 liga de modo significativo o eidos com a imposição de nomes; ver onoma).

3. Terá havido um desenvolvimento paralelo entre os filósofos? Tanto Platão como Aristóteles parecem sugerir que houve, Platão num raro relance pela história da filosofia (ver endoxon), diz que as exposições sobre a natureza da realidade se polarizaram em facções, as quais ele designa como Gigantes e Deuses. Os primeiros são materialistas (Soph. 246a-248a; confrontar as atitudes algo diferentes mas paralelas no Fédon 96a-d e Leis X, 889a-890a) e Platão refere-se provavelmente à tradição atomista. Os Deuses, por outro lado, são descritos como «amigos dos eide» (ibid. 248a-249d) e sustentam uma teoria da realidade supra-sensível que não é distinta da de Platão. Não são os eleatas visto que acreditam numa pluralidade de tais entidades (ver on).

4. A sua identidade foi procurada num passo de Aristóteles onde nos informam (Metafísica 987a-b) que Platão seguiu os pitagóricos em muitos aspectos, atribuindo a Platão apenas diferenças verbais dos pitagóricos e alguns aperfeiçoamentos introduzidos sob a influência de Crátilo heraclitico e do próprio Sócrates.

5. Teriam sido os pitagóricos os pais da teoria dos eide? Houve quem assim pensasse, argumentando, inter alia, com o ambiente fortemente pitagórico do Fédon onde a teoria é proposta por Platão pela primeira vez. Mas, pouco há que fundamente isto com base estritamente pitagórica e a afirmação é isolada em Aristóteles, acrescentada talvez quando ele chegou à conclusão que Platão identificara os eide com o número (arithmos).

6. A origem da teoria deve ser procurada mais na fonte. Sócrates estivera interessado em definir qualidades éticas (ver Metafísica 987b), provavelmente como reação contra o relativismo sofistico (ver nomos), e há razão para acreditar que os eide platônicos eram versões hipostasiadas precisamente dessas definições (logoi; ver Fédon 99e, Metafísica 987b, e comparar a conexão com a predicação, infra). De fato, nos «Diálogos Socráticos» pode ver-se o próprio Sócrates movendo-se em tal direção (ver Lísias 219d, Êutifron 5d, 6d; passos do Êutifron usam realmente eidos, mas o significado ainda está próximo de «aparência»; no Ménon 72c-e o uso tomou-se já mais abstrato). Mas, conforme o testemunho de Aristóteles, Sócrates «não separou a definição universal» (Metafísica 1078b), i. é, esta não possuía ainda existência transcendente, subsistente (choriston).

7. Para Platão os eide existiam separadamente (ver Timeu 52a-c) e as razões disto podem ser procuradas em considerações epistemológicas bem como nas éticas que preocuparam Sócrates e que também, quase de certeza, exerceram influência em Platão. Já assinalamos a sugerida influência de Heráclito em Platão (ver Metafísica 987a-1078b) para concluir que, dada a natureza flutuante e mutável dos fenômenos sensíveis (ver rhoe), o verdadeiro conhecimento (episteme) é impossível, impossível, isto é, a não ser que haja uma realidade estável e eterna para além do meramente sensível. Os eide são essa realidade supra-sensível e assim a causa da episteme e a condição de todo o discurso filosófico (Fédon 65d-e, Parm. 135b-c, Republica 508c ss.). Para os ulteriores corolários epistemológicos. ver doxa, episteme, noesis.

8. Embora os eide sejam o fulcro da metafísica platônica, Platão em parte alguma apresenta prova da sua existência, aparecem primeiro como uma hipótese (ver Fédon 100b-101d) e assim permanecem, se bem que sujeitos a uma crítica severa (Parm. 130a-134e). São conhecidos, numa pluralidade de métodos, pela faculdade da razão (noûs; Republica 532a-b, Timeu 51d). Um desses primeiros métodos é o da recordação (anamnesis), onde a alma individual relembra os eide com que esteve em contato antes do nascimento (Ménon 80d-85b, Fédon 72c-77d; ver palingenesia). Sem as conotações religiosas concomitantes é o método puramente filosófico da dialektike (ver Republica 531d-535a; para a diferença que faz do raciocínio matemático, ibid. 510b-511a; e da erística, Phil. 15d-16a). Tal como foi primeiramente descrito, o método visa o progresso de uma hipótese até a uma arche não-hipotetizada (Fédon 100a, 101d; Republica 511b), mas nos diálogos posteriores a dialektike aparece como uma metodologia plenamente articulada, compreendendo a «reunião» (synagoge) seguida por uma «divisão» (diairesis) que desce através das diaphorai, de uma Forma mais compreensiva até ao atomon eidos. Finalmente podem abordar-se os eide através do eros, paralelo desiderativo da primitiva forma da dialética (ver epistrophe).

9. A relação entre os eide indivisíveis e eternos e os fenômenos sensíveis (aistheta) e transitórios é descrita numa série de maneiras diferentes. Os eide são a causa (aitia) dos aistheta (Fédon 100b-101c), e diz-se que estes últimos participam (methexis) dos eide. Numa elaborada metáfora, constante em Platão, o aistheton é explicado como uma cópia (eikon) do seu modelo eterno (paradeigma), o eidos. Este ato de criação artística (mimesis) é obra de um artífice supremo (demiourgos).

10. Poucos problemas se têm levantado acerca da transcendência dos eide (cf. Timeu 51b-52d), mas o uso que Platão faz de methexis sugere também um grau de imanência (Fédon 103b-104a, Timeu 50c; e ver gênesis), e isto constitui o centro de muita da crítica no Parmênides (ver 130a-132b) e em extensos passos da Metafísica. Onde colocar, então, os eide? Aqui surge a analogia. Tal como os aistheta estão contidos numa certa espécie de unidade orgânica que é o kosmos, assim também os eide existem em algum «lugar inteligível» (topos noetos, Republica 508c, 517b; a expressão kosmos noetos, não aparece antes do platonismo tardio) localizado «para além dos céus» (Fedro 247c). A imagem torna-se mais penetrante no Timeu 30c-d onde os eide estão organizados dentro do «ser vivo inteligível» (zoõn noeton). Ver também ekei.

11. À primeira vista parece haver um eidos platônico para cada classe de coisas. Assim há eide éticos (Farm. 130b, Fedro 250d), eide matemáticos (Fédon 101b-c; ver arithmos eidetikos), eide de objetos naturais (Timeu 51b, Soph. 266b; confrontar Metafísica 1070a) e até mesmo de objetos triviais (Parm. 130c). O que é talvez mais surpreendente é encontrar eide para objetos artificiais (Republica 596a-597d, Soph. 256b. Ep. VII, 343d; comparar Metafísica 991b), relações (Fédon 74a-77a, Republica 479b, Parm. 133c), e negativos (Republica 476a, Teeteto 186a, Soph. 257c). Por trás de tudo isto pressupõe-se a methexis: uma vez que os sensíveis participam dos eide devem ser nomeados univocamente (homonymos) com eles (Parm. 133d, Soph. 234b; ver D. L. III, 13), e assim os modos de predicação podem ser tomados como critérios para a existência dos vários eide (Republica 596a). São, então, os eide apenas ideias ou conceitos? O problema é efetivamente levantado nos diálogos, apenas para ser negado (ver Parm. 132b-c, 134b).

12. Em vários pontos dos diálogos Platão parece conceder preeminência a um ou outro dos eide. Por isso tanto o Bem (Republica 504c-509c) como o Belo (Symp. 210a-212b) são postos em relevo, para não falar da hipótese evidente do Uno no Parmênides (137c-142; ver hen, hyperousia). Mas o problema da inter-relação ou, como Platão lhe chama, «combinação» ou «comunhão» (koinonia), e, implicitamente, da subordinação dos eide não é levantado formalmente antes do Sofista. Concorda-se, de novo na base da predicação, que alguns eide se misturarão com outros e outros não, e que a tarefa da dialética é discernir os vários grupos, particularmente através do método diacrítico conhecido por diairesis (Soph. 253b-e).

13. Platão escolhe, para ilustrar o processo, (ibid. 254b-255e) cinco eide — Existência (on), o Mesmo, o Diferente (heteron), Movimento (kinesis) e Repouso, os quais designa por (254d) «os gêneros maiores» (megista gene). Ambas as palavras nesta expressão estão abertas a diferentes interpretações. Uma leitura de megista como um verdadeiro superlativo, «o maior» e de gene. como «gêneros» ou «classes» leva à descoberta dos summa genera platônicos, o equivalente das kategoriai aristotélicas. A passagem foi assim lida por Plotino (ver Eneadas VI, 1-3) que fala dos gene do ser. Mas há uma grande dúvida quanto aos gene deverem ser lidos como genera no sentido aristotélico; é característico em Platão o uso frequentemente de genos como sinônimo de eidos e assim a expressão em causa pode não significar mais do que «alguns eide muito importantes». Para outros aspectos do eidos platônico, ver arithmos, mathematika, metaxu, monas, dyas.

14. Na sua Metafísica Aristóteles sujeita a teoria do eidos a uma extensa análise crítica (ver 987a-988a, 990a-993a, 1078b-1080a; confrontar o diálogo aristotélico coevo, De phil. frgs. 8,9). As determinações do valor desta crítica articulam-se em dois pontos essenciais e obscuros: a distinção entre Platão e os seus sucessores sobre o assunto da mathematika, e a existência e uso aristotélico de fontes que não nos são acessíveis (ver agrapha dogmata).

15. A principal diferença entre a concepção platônica e a aristotélica dos eide é que para a última o eidos não é (excepto nos casos do primeiro motor e/ou motores, e o do noûs «que vem de fora»; ver kinoun, noûs) um subsistente separado (choriston), mas um princípio de substâncias completas. É a causa formal das coisas (Physica II, 194b), um correlato da matéria nos seres compósitos (ibid. I, 190b), e a essência inteligível (ousia) de um existente (Metafísica 1013a, De gen. et corr. II, 335b; ver ousia). Ao conhecermos as coisas conhecemos o seu eidos (Metafísica 1010a), i. é, a faculdade apropriada (noûs ou aisthesis) torna-se a coisa que ela conhece em virtude do eidos do objeto conhecido penetrar na alma (De anima III. 431b-432a). O eidos é, em resumo, uma atualização (energeia, entelecheia; Metafísica 1050b, De anima II, 412a).

16. Tal como em Platão, o eidos aristotélico, considerado de um ponto de vista lógico, tem íntima conexão com a predicação. O eidos conceptual é o universal da predicação e o sujeito da definição (Metafísica 1036a, 1084b). Mas diferem da versão platônica dos eide não só em virtude do fato de não serem hipostasiados em substâncias, mas também por serem «classificados», i. é, eles ordenam-se a partir do atomon eidos, que não pode ser dividido em espécies mais limitadas mas apenas em indivíduos (e esta «divisão» da infima species é função da sua conexão com a matéria não em virtude da presença de uma diaphora; ver hyle), através de eide cada vez mais latos, chamados gene, até aos summa genera, as kategoriai; sobre o eidos como universal, ver katholou.

17. Os eide continuaram a ser importantes na filosofia posterior. Os eide aristotélicos que são imanentes à matéria e dirigem toda a estrutura teleológica dos existentes individuais foram incorporados no estoicismo como os logoi spermatikoi. A versão transcendental platônica dos eide parece ter cedido perante a crítica aristotélica, mas eles reaparecem na tradição platônica com Antíoco de Ascalão (Cícero, Acad. post. 8, 30-33). Mas sendo este um tempo perigoso para a ortodoxia, bem depressa os eide estão a ser interpretados como os pensamentos de Deus (Fílon, De Opif. 4, 17-20; Albino, Epit. 9, 1-2). Embora Platão tivesse negado um estatuto puramente noético aos seus eide (ver acima 11), a noção deve ter encontrado algum apoio na Academia (ver Aristóteles, De anima III, 429a). Mas foi sem dúvida a designação aristotélica de Deus como noûs que foi aqui o fator mediador, encorajado seguramente por toda a metáfora platônica de mimesis com a sua forte sugestão de que aquilo que Aristóteles chamou causa formal existe primeiro como um paradeigma no espírito do artífice antes de se tornar imanente às coisas. Assim, ao postular os eide como os pensamentos de Deus, postulado que continua através de Plotino (ver Eneadas V, 1,4) até à Cristandade, e ao mesmo tempo mantendo os eide aristotélicos como causas formais imanentes com uma orientação no sentido da matéria (ver Fílon, De opif. 44, 129-130), chegou-se a uma solução, pelo menos parcial, para o dilema da imanência vs. transcendência. Mas o problema continuou importante no platonismo, discutido com profundidade por Plotino (Eneadas IV, 4) e Proclo (Elem. theol., prop. 23); ver noeton.

Para as dificuldades epistemológicas decorrentes da transcendência, ver agnostos; para a hierarquização dos eide no platonismo tardio, hypostasis; para os eide dos indivíduos, hyle; para a localização dos eide tanto nas suas manifestações transcendentes como nas imanentes, noûs; noeton. [FEPeters]


Quando olhamos para qualquer coisa, estamos, de fato, confrontados com algo que surge, mas não com o que lá está, na verdade, na base de cada apresentação. De cada vez que se olha, é-se confrontado apenas com um delineamento esboçado e inacabado do que cada coisa é. O fazedor de camas não faz a sua essência [República, 597a1]. Ο εἶδος é a forma de manifestação sem a qual o que nós veríamos seria apenas uma forma retangular assente sobre quatro paus de madeira. Nunca, porém, uma cama. É sobre esta evidência que a fenomenologia de Husserl trabalha, procurando levá-la sistematicamente até às últimas consequências nas operações Abschattung/Abgeschattete.]. Ele faz só uma certa cama [Rep., 597a2], qualquer coisa como o ser, que, todavia, não o é [Rep., 597e4]. Há uma diferença radical entre uma κλίνη τις [kline tis] e o seu εἶδος [eidos], ὅ ἐστι [o esti].]. A cama onde dormimos é só qualquer coisa que imita, apresenta e reproduz o verdadeiro ser da cama, mas enquanto imitação não é o genuíno ser, o aspecto essencial (εἶδος) «cama». O trabalho (ἔργον [ergon]) do fazedor de camas ou de um outro qualquer artesão não é, por isso, o de uma forma acabada [Rep., 597e5]. [CaeiroArete:60]