gr. διάβολος, διάβολον: que desune (inspirando ódio, inveja, etc.), calúnia, maledicência, caluniador, diabo; διάβολή, διάβολῆς: desavença, inimizade, aversão, repugnância.
5. Mas de que consiste a «tentação diabólica» e a «venda da alma ao Diabo»? Já dissemos que ele não hesitaria em gastar o seu último centavo para pagar a transferência da sua responsabilidade para os homens, de maneira que o seu mais hábil ardil fosse o insinuar em nós a convicção da sua inexistência. Mas, a despeito de todas as aparências, persisto em crer na sua existência e na ação deletéria que ele exerce sobre nós. «Diabólico» tem por étimo o verbo grego diabállein, que, entre outros, tem o significado de «separar», de modo que «diabólico» quereria dizer «qualidade inerente ao separado». [EudoroMito:92]
O termo “diabo” tem a ver com o conceito da confusão, e, de maneira inquietante com o conceito “Deus”. Mas esses acordes etimológicos que a expressão “história do diabo” evoca serão apenas registrados pelo nosso ouvido ingênuo, e aceitos sem crítica, embora com emoção, ao tentar aproximarmo-nos do príncipe das camadas inferiores. A divindade se apresenta àquele que A procura em múltiplos aspectos, de modo que por “embarras de choix” se torna Ela inalcançável. O mesmo se dá na tentativa de agarrarmos o diabo. Mas a Divindade é intemporal. Ela simplesmente é, e a correnteza dos acontecimentos transcorre alhures. O diabo é possivelmente imortal, mas certamente surgiu em dado momento. Ele nada na correnteza do tempo, quiçá a dirige, ele é histórico no sentido estrito do termo. É possível a afirmativa de que o tempo começou com o diabo, que o seu surgir ou a sua queda representam o início do drama do tempo, e que “diabo” e “história” são os dois aspectos do mesmo processo. Assim poderíamos afirmar que a nossa tentativa de fugir do diabo é um outro aspecto da nossa tentativa de emergir da temporalidade e ingressar no reino das Mães imutáveis. Mas uma afirmativa semelhante demonstraria uma atitude negativa para com o diabo e faria com que tomassem conta de nós os preconceitos que contra ele nutrimos. Se lhe queremos fazer justiça, devemos evitar a influência da propaganda antidiabólica que há tanto tempo deturpa a sua imagem. Um príncipe que tantos encheu de entusiasmo no decorrer da história humana, e em louvor do qual tantos enfrentaram as chamas com dedicação ardente – tantos mártires, tantas bruxas, tantos feiticeiros – um príncipe tão glorioso merece que a nossa mente esteja [22] livre de preconceitos, quando dele nos aproximamos para conhecê-lo pelo menos em parte.
Nós, os ocidentais, somos produtos de uma tradição oficial que pinta o diabo com cores negativas, a saber, como opositor de Deus. Essa tradição parece querer esgotar-se. Ultimamente poucos ocidentais têm-se dedicado à pintura do diabo. As próprias religiões parecem não ter mais o diabo no corpo. O Ocidente cala-se com respeito ao diabo, e pretende tê-lo esquecido, de acordo com a regra: “não se pense nele”. É uma atitude suspeita. Havia épocas, por exemplo os séculos treze e dezesseis, em que o tema do diabo era discutido pública e apaixonadamente. Eram épocas incômodas para o domínio do diabo. Uma breve consideração da atualidade e da história recente parece demonstrar como esse domínio consolidou-se. Essa consideração é um dos motivos deste livro.
Disse que a nossa tradição oficial concebe o diabo negativamente, como espírito sedutor, enganador e aniquilador de almas. Esses atributos diabólicos não precisam ser necessariamente valorizados de maneira negativa, já que permitem a pergunta: “qual é a justificativa do diabo no seu procedimento?” Mas, inegavelmente, predispõem esses atributos a nossa mente contra o diabo. Eles não são o ponto de partida indicado para as investigações do caráter diabólico que este livro pretende. Para conhecer os seus motivos, os seus métodos e os seus feitos, é preciso procurar por outros aspectos, mais positivos, do seu caráter. Isto não deve ser difícil, pois são tantos os seus efeitos, e tantas as suas manifestações, no mundo externo e no nosso íntimo, que as indicações abundam. Toda a sinfonia da civilização, todo o avanço da humanidade contra os limites impostos pela Divindade, toda essa luta prometéica pelo fogo da liberdade, tudo isto não passa, do seu ponto de vista, de obra majestosa do diabo. Ou do ponto de vista oposto, tudo isto não passa de ilusão criada pelo diabo. Ciência, arte e filosofia são os exemplos mais nobres dessa obra. Se considerarmos como se desenvolveram essas atividades no curso da história, e como se distanciaram do pecado original ingênuo, teremos conseguido uma primeira visão dos múltiplos aspectos positivos do caráter do diabo.
[…] O “Divino” será portanto concebido (se concebido pode ser) como aquilo que age dentro do mundo fenomenal para dissolver e salvar esse mundo, e transformá-lo em puro Ser, portanto em intemporalidade. E o diabo será concebido como aquilo que age dentro do mundo fenomenal para mantê-lo, e evitar que seja dissolvido e salvo. Do ponto de vista do puro Ser, será o “Divino” o agente criador e o “diabo” será aniquilamento. Mas do ponto de vista do nosso mundo será o “diabo” o princípio conservador, e o “divino” será, eufemisticamente falando, o fogo purificador do ferreiro. Estas considerações, por si só, já confundem os nossos conceitos tradicionais do céu e do inferno. É dever do diabo manter o mundo no tempo. Uma derrota definitiva do diabo (por inconcebível que seja) seria uma catástrofe cósmica irremediável. O mundo se dissolveria. Mas a nossa tradição nos ensina que o mundo foi criado por Deus. Começamos a perceber os motivos positivos do diabo. E os motivos divinos continuam obscuros. Já agora intuímos o fato de que o diabo é-nos muito mais próximo que o Senhor, e que seguir o diabo é muito mais cômodo e simples do que perseguir os obscuros caminhos divinos. A primeira simpatia pelo diabo esboça-se no nosso íntimo, e reconhecemos nele um espírito semelhante e talvez tão infeliz quanto o nosso. Mas devemos tomar cuidado em não exagerar essa semelhança. O diabo (na nossa concepção desse termo) conhece o seu dever, e nós duvidamos do nosso. O seu projeto é claro, e ele o realiza, especialmente na época atual, com êxito admirável. Mas nós somos “livres”, isto é, podemos tanto seguir o diabo como a divindade, e erramos, portanto, em círculos mal traçados. O progresso retilíneo é coisa do diabo. A humanidade, se progrediu, o fez graças a ele. Como seres “livres” estamos no ponto do primeiro dia. O diabo segue o seu caminho, e a história canta a glória dos seus feitos. A humanidade está tão próxima ou afastada da sua meta como Adão e Eva. É verdade que uns poucos [24] entre nós parecem ter alcançado Deus, e outros parecem ter encontrado o caminho do inferno. Mas a grande maioria continua errando no meio. A história do diabo é a história do progresso. O nosso livro deveria ter-se chamado “evolução”, mas esse termo teria causado mal-entendidos. Evolução como história do progresso é a história do diabo. Essa evolução se processa em múltiplas camadas. Em cada uma delas age o diabo de maneira diferente. Em cada uma delas o seu progresso provoca a nossa admiração e o nosso assombro. Se escolhermos a esmo exemplos das suas obras, e contemplarmos o progresso a partir do elixir do amor até a vitamina E, ou a partir da vassoura da bruxa até o “sputinik”, teremos uma primeira visão esboçada dos métodos geniais por ele empregados. [FlusserDiabo:21-24]