criar

Perguntávamos: que sentido pode ter o «e Deus criou o homem à sua imagem e semelhança»? Procuramos, primeiro, determinar o significado de [63] «semelhança», dizendo que A é semelhante a B se, de algum modo, em A se vê uma imagem de B. E, então, seguia-se outra pergunta: qual o modo certo, pelo que em A se pode ver uma imagem de B? Já recusada, de início, como falaciosa aparência, propusemos que tal modo podia ser o de a operosidade humana se fazer imagem da criatividade divina. Mas a poiesis é mais um antropomorfismo. Não cremos que Deus faça o quer que seja. Não há teísmo sem transcendência. Deus não fez o mundo; e falar de «criação» é como querer subir em cima dos próprios ombros para descortinar o que não se vê de pés firmados na terra; é maneira de pretender triunfar sobre a inefabilidade da relação entre Deus e o mundo, da maneira que menos a prejudique. «Criar», quando não seja determinadamente «cultivar», diz mais do que «fazer», excede o fazer, de um modo indeterminado, e o indeterminado excesso do «criar», em relação ao «fazer», é a medida sem medida da separação, daquela que, desde os primeiros alvores da filosofia ocidental, pôs na boca de Heráclito as palavras de sentido inesgotável do fragmento 108: «De tantos que ouvi falar, nenhum chegou a ponto de reconhecer que o Sábio [neutro: «coisa sábia»] é Um, de tudo separado.» Seguindo de perto a tradução de Snell, vê-se que a bem propositado propósito o tradutor, depois do vocábulo decisivo, kekhorismenon, menciona entre parêntesis a tradução literal latina: ab-solutum. «Criação» quer resguardar a absolutidade do Absoluto, do desligado, do separado. Outra questão é a que não se deixa, nem dificilmente, questionar por via racional: se mundos não subsistem sem deuses, e, sem Deus, a mundanidade de todos os mundos, como manter que o Sábio de tudo esteja ou seja separado? Aristóteles chegou a uma solução do problema, mediante o seu Motor Imóvel, tão separado do Mundo quanto o Sábio de Heráclito, tão separado e tão sábio, pois que é noesis noeseos (pensamento do pensamento), mas pô-lo no alegórico: o Separado move o de que se separa, movendo-o como o Amado move (atrai) o que o ama. Em todo o caso, e seja qual for o mistério codificado, a separação mantém-se, de Heráclito a Aristóteles. Subsiste sem que razão exista. Pois bem; não teria Deus criado o homem à sua imagem e semelhança, porque «eu» estou separado do «mim mesmo», porque «tu» estás separado do «ti mesmo», porque «ele» está separado do «si mesmo», porque em cada um de nós há uma subjetividade irredutível, comparável, ao Absoluto? Não é por aí que homem se assemelha a Deus? Se não, não sei; resigno-me a não mais querer averiguar qual seja outra razão de semelhança. Pois, do «eu», também o homem só pode dizer: «eu sou o que sou». [EudoroMito:63-64]