(lat. Contingens; in. Contingent; fr. Contingent; al. Kontingent; it. Contingente).
1. Os escolásticos latinos traduziram por esse termo o aristotélico grego endekomenon em De int, 12, 20 b 35. Boécio, a quem se deve a determinação de boa parte da terminologia filosófica latina, já observava que possibile e contingens significam a mesma coisa, salvo talvez pelo fato de não existir o negativo de contingens, que deveria ser incontingens, assim como existe o negativo de possibile, que é impossibile (De interpretatione, [II], V; P. L., 64s, col. 582-83). Todavia, na tradição escolástica, e sobretudo por influência da filosofia árabe, o termo contingente passou a ter significado específico, diferente do que se entende por “possível”; passou a significar aquilo que, embora sendo possível “em si”, isto é, em seu conceito, pode ser necessário em relação a outra coisa, ou seja, àquilo que o faz ser. P. ex., um acontecimento qualquer do mundo é contingente no sentido de que: 1) considerado de per si, poderia verificar-se ou não; 2) verifica-se necessariamente pela sua causa. Desse ponto de vista, enquanto o possível não só não é necessário em si, mas tampouco é necessariamente determinado a ser, o contingente é o possível que pode ser necessariamente determinado e, portanto, pode ser necessário. Por isso, a noção de contingente é ambígua e pouco coerente, mas seu uso na filosofia antiga e moderna é bem grande. Esse uso foi introduzido pelo necessitarismo árabe, especialmente por Avicena. “Se uma coisa não é necessária em relação a si mesma”, dizia Avicena, “é preciso que seja possível em relação a si mesma, mas necessária em relação a uma coisa diferente” (Met., II, 1, 2). O que é possível permanece sempre possível em relação a si mesmo, mas pode ocorrer que seja de modo necessário em virtude de uma coisa diferente de si (Ibid., II, 2, 3). Desse modo, tudo o que existe, de Deus à coisa natural mais ínfima, existe necessariamente, segundo Avicena. Mas enquanto Deus e as realidades primeiras são necessárias em si, as coisas finitas são necessárias “para outra coisa”, já que em si mesmas são possíveis; e nesse sentido são contingentes. Essa noção não se alterou substancialmente em toda a filosofia escolástica nem na filosofia moderna, que, no entanto, utiliza-a muito menos. S. Tomás, que define o contingente como possível, isto é, como “o que pode ser ou não ser”, reconhece que nele já podem ser encontrados elementos de necessidade (S. Th., I, q. 86, a. 3). Duns Scot reproduz a noção de Avicena, defendendo-a da acusação de contradição (Op. Ox., 1, d. 8, q. 5, a. 2, n. 7). Essa noção reaparece com a clareza desejável na doutrina de Spinoza: segundo ele uma coisa só pode ser considerada por um defeito de nosso conhecimento (Et., I, 33, scol. 1), já que na realidade, nada há de contingente e tudo é determinado pela natureza divina para ser e para atuar de certo modo (Ibid., I, 29). A escolástica falava também de “verdades contingentes”, que são as que se referem a eventos contingentes (p. ex., Ockham, In Sent., prol., q. 1. Z). Leibniz dizia que as verdades contingentes se distinguem das verdades necessárias assim como os números incomensuráveis se distinguem dos comensuráveis, isto é, no sentido de que, assim como é possível obter resolução dos números incomensuráveis à medida comum, também é possível obter a redução das verdades necessárias a verdades idênticas. Isso, porém, exigiria um progresso infinito para as verdades contingentes (ou de fato), progresso que pode ser efetuado somente por Deus (Op., ed. Erdmann, p. 83). Em sentido análogo, fala-se hoje de “contingência lógica”, no sentido de que não se pode comprovar se as proposições empíricas são verdadeiras ou falsas a partir de qualquer de seus caracteres lógicos: é o que faz C. I. Lewis (Analysis of Knowledge and Valuation, p. 340). Carnap no mesmo sentido usa esse termo (Meaning and Necessity, § 39) (v. modalidade; possível).
2. Na filosofia contemporânea, sobretudo na francesa a partir da obra de Boutroux, A contingência das leis da natureza (1874), o termo contingente passou a ser sinônimo de “não-determinado”, isto é, de livre e imprevisível; designa especialmente o que de livre, nesse sentido, se encontra ou age no mundo natural. Bergson adota esse termo no mesmo sentido: “O papel da contingência é importante na evolução. Contingente, o mais das vezes, são as formas adotadas, ou melhor, inventadas. Contingente, relativamente a obstáculos encontrados em tal lugar e em tal momento, é a dissociação da tendência primordial em diversas tendências complementares que produzem linhas divergentes de evolução. Contingente são as paradas e os retornos” (Évol. créatr., 11a ed., p. 277, 1911). Nesse sentido, contingência identifica-se com liberdade e ambas se opõem a necessidade; ao passo que a possibilidade, segundo Bergson, é só a imagem que a realidade, em sua autocriação contingente, isto é, “imprevisível e nova, projeta de si mesma em seu próprio passado” (La pensée et le mouvant, p. 128). O uso do termo “contingência” nesse significado caracteriza as correntes do chamado indeterminismo contemporâneo: doutrinas filosóficas que interpretam a natureza em termos de liberdade e de finalidade, isto é, em termos de espírito. A esse significado também se reporta o uso desse termo por Sartre, para quem contingência é o fato, de a liberdade “não poder não existir”. Contingência, portanto, é a liberdade na relação do homem com o mundo (L’être et le néant, p. 567). [Abbagnano]
O problema da percepção da existência concreta, isto é, da existência deste ser que percebe pelos sentidos, está em íntima conexão com o problema do conhecimento do singular. De uma parte, com efeito, só o singular existe e, mais profundamente, o que obsta a intelecção, tanto no existente como tal, quanto no singular, é a materialidade ou a potencialidade que o limita. De si o singular e o existente não são de modo algum ininteligíveis. São as condições nas quais se encontram implicados no mundo que nos cerca que velam o olhar do espírito.
É importante notar que o conhecimento da existência, do qual se trata presentemente, não é a concepção universal ou quididativa que a inteligência pode formar desta noção. Assim, tenho a ideia comum do que existe. Mais fundamentalmente, é preciso reconhecer que em sua primeira apreensão, que é a do ser, o espírito se refere sempre à existência. O ser é, com efeito, o que existe ou pode existir. Em seu primeiro trabalho, a inteligência envolve de algum modo a ordem do abstrato e a do concreto e é o que faz com que ela possa ir depois de um para outro. Atualmente, porém, trata-se da apreensão de tal existência determinada. Lembremos que ainda aqui nós nos limitamos voluntariamente ao problema do conhecimento, pela inteligência humana, da realidade percebida pelos sentidos.
A tese comum do conhecimento do contingente. Esta questão da apreensão pela inteligência humana do concreto existente, deve ser compreendida na tese mais geral do conhecimento, por toda inteligência, do contingente (cf. Ia Pª, q. 86, a. 3).
O ser contingente é aquele que não existe necessariamente ou que pode não existir. Como conseguiremos atingi-lo? Convém, antes de tudo, colocar de lado um primeiro conhecimento deste ser que se liga ao conhecimento quididativo Em todo ser contingente, com efeito, há determinações necessárias que resultam de sua forma, ou da natureza das coisas, e que a inteligência pode evidentemente conceber. Assim direi que se Sócrates se põe a correr, é necessário que se mova. Mas, como poderia reconhecer que Sócrates corre, sendo isto um fato contingente?
Na resposta que dá aqui a esta questão, Tomás de Aquino recorre à mesma explicação que havia proposto para o singular: na realidade, os dois problemas se confundem, pois a singularidade e a contingência têm semelhantemente sua raiz na matéria. Como o singular, portanto, o contingente será captado de modo direto pelo sentido e indiretamente pela inteligência: “Contingentia, prout sunt contingentia, cognoscuntur directe quidem sensu, indirecte autem intellectu”. Consequentemente é na e pela reflexão sobre as imagens que se atinge a existência concreta das coisas, a qual diretamente se refere só ao sentido. É possível precisar ainda o modo deste conhecimento concreto do existente?
Conhecimento de visão ou “per praesentiam”. Tomás de Aquino explicou este ponto sobretudo a propósito de caso privilegiado do conhecimento que Deus tem do contingente existente (cf. I, q. 14, a. 2). Em Deus deve-se distinguir dois tipos fundamentais de saber: – a ciência da visão, que se relaciona ao que é concretamente existente (no passado, no presente ou no futuro); – a ciência de simples inteligência, que concerne aos possíveis que jamais serão realizados. Aproximativamente, esta distinção corresponde à que se encontra em nosso caso do conhecimento abstrativo e da apreensão do concreto.
Em que exatamente diferem os dois saberes considerados? João de Tomás de Aquino (cf. Logica, q. 23, a. 2) glosando certas passagens de Tomás de Aquino (em particular De Veritate, q. 3, a. 3), concluiu que a ciência de visão se distingue da ciência de simples inteligência por lhe acrescentar uma diferença que está fora da ordem da representação e que é a presença da coisa: a coisa concebida de maneira abstrativa é vista como presente. Em linguagem moderna fala-se antes de intuição. Deve-se notar, em favor desta interpretação, que o próprio Tomás de Aquino, desde que se trate do conhecimento atual do contingente, fala sempre da presença da coisa: a ciência de visão é assim formalmente um conhecimento “per praesentiam”.
O comentador que aqui seguimos aplica a precedente análise ao caso do conhecimento. Que modificação deverá padecer o conhecimento abstrativo ou conceitual para atingir a existência como tal? A mesma que precedentemente: será preciso que o conceito seja referido à coisa vista como presente à nossa faculdade, ou que nosso conhecimento termine nesta coisa, tendo-se especificado que a presença, de que aqui se trata, é concreta e não simplesmente representada: sei com efeito, que Deus está presente em toda parte e contudo não posso, por este fato, dizer que o vejo. Será conveniente precisar ainda que esta presença à nossa faculdade supõe a atividade do objeto sobre a potência e funda-se sobre ela mesma. Em nós, a ordem do conhecimento concreto repousa, em última análise, sobre a ordem da eficácia causal.
Conclusão: o juízo de existência. O juízo de existência concreta, “o que percebo atualmente existe”, tão somente explica, no nível da operação perfectiva de espírito, o que se acha dado na primeira apreensão, duplicada pela reflexão sobre o conhecimento sensível que está em sua origem.
Um objeto apresenta-se aos meus sentidos. Por abstração eu o concebo intelectualmente como algo que é (noção confusa do ser material); mas simultaneamente esta concepção aparece-me ligada ao objeto que captei como presente. Se decomponho este dado primitivo segundo os dois aspectos que me oferece, de sujeito determinado e de existência atual, vejo que a existência atual convém a este sujeito e eu lha atribuo; pronuncio então este juízo: “isto existe”, no qual afirmo o caráter concreto do ser percebido; ao mesmo tempo tomo consciência da verdade de meu pensamento enquanto este se confronta com o objeto considerado.
Assim termina o ciclo total da atividade intelectual, a qual visa atingir o ser até sua atualidade última e perfectiva, a existência. Resta evidentemente efetuar, em uma outra linha, todo o processo, precedentemente descrito, pelo qual a inteligência procura adquirir um conhecimento distinto da essência. [Gardeil]