Até agora elaboramos nossa teoria da inteligência em função do conhecimento das coisas materiais. Mas é certo que se encontra em nós um conhecimento privilegiado de um ser que não é puramente material: o sujeito que pensa. Na filosofia moderna este domínio do psiquismo foi objeto de uma atenção toda particular e o conhecimento do “eu” tomou assim uma importância crescente.
Para só considerar o aspecto metafísico desta questão, pode-se perguntar, com diversos filósofos de nossa época, se a percepção deste “eu” não seria o princípio mesmo do saber. Princípio, aliás, concebido de modo tão diferente por um Descartes, que nele vê uma substância espiritual, por um Maine de Biran, que o identifica com o esfôrço motor voluntário, por um Bergson, que o confunde com a duração, por um Fichte, que dele faz dura atividade a priori e absoluta enquanto que, em oposição, Kant afirma que, ontologicamente considerado, o “eu” pertence ao mundo inatingível do número.
Teremos ocasião de voltar a estas posições para as apreciar segundo nosso ponto de vista. Nossa intenção presentemente é expor a doutrina de Tomás de Aquino na linha mesma de sua problemática e de seu desenvolvimento original. E só depois poderá ser verdadeiramente frutuoso um confronto corri outros pensamentos.
O problema colocado a Tomás de Aquino
O problema do conhecimento da alma e de sua atividade ocupa um lugar secundário na psicologia de Aristóteles. Esta é manifestamente dominada pela preocupação de valorizar, em reação contra o espiritualismo platônico, o primado do conhecimento das coisas materiais.
Uma só questão neste domínio parece reter um pouco a atenção do filósofo, a da inteligibilidade das potências da alma. Se é verdade que inteligível é só o que está em ato, como será possível falar de um conhecimento direto das potências? Responde Aristóteles que efetivamente só atingimos as potências por intermédio de seus atos. É o que aparece no livro II do De Anima (c. 4, 415 a 14-22), onde está dito que a ordem da pesquisa psicológica é a seguinte: conhecimento dos objetos, dos atos que os especificam e, por meio deles, das potências que estão no seu princípio. E igualmente o que se conclui da exegese de uma passagem embaraçada do livro III (c. 4, 429 b 27-430 a 9), de onde Tomás de Aquino tira que só conhecemos nosso intelecto porque temos a percepção de nosso ato de intelecção: “non enim cognoscimus intellectum nostrum nisi per hoc quod intelligimus intelligere”. A fortiori concluir-se-á que só temos do “eu” um conhecimento indireto na e pela sua atividade.
As elaborações pessoais de Tomás de Aquino vão se situar na linha das preocupações precedentes, isto é, face ao problema metafísico da inteligibilidade das potências e ulteriormente da alma intelectiva: problema abarcado por este adágio e de cuja demonstração estará dependendo: “uma coisa é cognoscível na medida em que está em ato e não na medida em que está em potência… unumquodque cognoscibile est secundum quod est in actu et non se, cundum quod est in potentia” (Ia Pa, q. 87, a. 1).
Sobre esta questão, todavia, o Doutor angélico devia também levar em conta um outro modo de ver que remontava à autoridade maior de S. Agostinho. Para este, sabe-se, a vida psíquica aparecia bem menos tributária da percepção sensível. Assim, a alma se conhece diretamente por si mesma: “mens seipsam per seipsam novit” (De Trinitate, l. 9, c. 3) . Neste texto, diversas vezes retomado por Tomás de Aquino, encontra-se uma tradição espiritual aparentemente oposta ao intelectualismo sensualista de Aristóteles. Será preciso optar entre as duas atitudes, a menos que se revele possível uma conciliação superior das duas teses.
Advinha-se sem custo que nesta discussão vai entrar em jogo a natureza profunda ou a estrutura do ser humano. É ele só um espírito encarnado? Não teria, ao menos em estado latente, as virtualidades de um espírito puro? Toda a significação do homem está aqui engajada. Tomás de Aquino que, desde o início aqui se colocara na dependência do peripatetismo, parece ter hesitado ao tocar as doutrinas da tradição cristã. Mais acolhedor em seus primeiros escritos, será mais reservado na Summa. Vamos segui-lo nestas tomadas de posições sucessivas marcadas pelos textos maiores do De Veritate (q. 10, a. 8) e da Ia Pa (q. 87, a. 1) . A solução trazida ao problema do conhecimento da alma separada por si mesma (Ia Pa, q. 89, a. 1) acabará por nos fixar em suas vistas profundas. O estudo comparativo assim empreendido, terá o interesse suplementar de nos fazer captar, em um caso concreto, como se comporta nosso Doutor quando Aristóteles e S. Agostinho parecem se opor.
A exegese de Tomás de Aquino
Trata-se de se saber se a alma intelectiva (mens) se conhece diretamente pela sua essência ou por intermédio de “species” abstraídas das imagens que a atuaram: “Utrum mens se ipsam per essentiam cognoscat vel per aliquam speciem?” Duas séries de objeções colocam o problema em toda sua acuidade: uma série de 16 objeções em favor da tese aristotélica do conhecimento indireto “per speciem” e outra de 11, no sentido da tese agostiniana do conhecimento “per essentiam” (De Verit., q. 10, a. 8).
No corpo do artigo, começa Tomás de Aquino por distinguir dois tipos de conhecimento da alma por si mesma: um, pelo qual a alma se conhece naquilo que tem de próprio (conhecimento individual e concreto); outro, pelo qual a alma se conhece naquilo que tem de comum com as outras almas (conhecimento universal e abstrato). Deixemos de lado este último conhecimento, que interessa às técnicas elaboradas da ciência, para ficarmos com a percepção primitiva e experimental da alma.
Aqui ainda devemos distinguir o caso do conhecimento atual, no qual a alma se conhece por meio de seus atos, como o quer Aristóteles, e o caso do conhecimento habitual conforme o qual convém afirmar com S. Agostinho que a alma se conhece por sua essência. Precisemos estes dois pontos.
– Conhecimento atual da alma por si mesma.
“É nisto que cada um percebe que tem uma alma, vive ou existe: porque sente, faz ato de inteligência, ou exerce atos vitais desta ordem”. Para Aristóteles há incontestavelmente nisto um dado primitivo. É em e por meio de minha atividade psíquica que me conheço. Vindo a cessar esta atividade, a consciência do “eu” encontra-se, por este fato mesmo, abolida. Mas isto justifica-se igualmente a priori pela teoria da inteligibilidade precedentemente proposta: uma coisa é inteligível na medida em que está em ato. Ora, a inteligência, antes da recepção da ,(species”, está em potência na ordem dos inteligíveis. Ora, só será inteligível por si mesma e só se tornará tal quando atuada por uma “species”. Dever-se-á concluir que é por intermédio desta que a alma se conhece atualmente.
– Conhecimento habitual da alma por si mesma.
Aqui não se requer a mediação de nenhuma “species”: basta a presença da alma a si mesma: “pelo fato de a sua essência lhe estar presente, a alma tem a possibilidade de passar ao conhecimento de si”. Assim como aquele que tem o hábito de uma ciência, o matemático, por exemplo, pode imediatamente e por meio de seus recursos próprios passar ao exercício do seu saber, assim também a alma pode produzir o conhecimento de si.
Qual é exatamente a dimensão desta afirmação? Apressemo-nos em afastar uma interpretação que seria errada. O conhecimento habitual, de que aqui se trata, não é de modo algum atual, nem consciente. Nada tem a ver com esta percepção surda e contínua de si que acompanha toda a nossa vida psíquica. Estamos presentemente ao nível das estruturas profundas da alma. Aqui não se duvida que o Doutor angélico tenha querido aproximar o conhecimento humano do conhecimento dos espíritos puros. De si a alma espiritual é inteligível; por outro lado, está evidentemente presente a si mesma enquanto inteligente; há, pois, radicalmente tudo o que é preciso para justificar um ato de conhecimento de si mesma. Mas as necessidades preliminares do conhecimento abstrativo fazem obstáculo à realização atual, imediata e permanente, deste estado latente de conhecimento de si.
Existe, na presente condição de união com um corpo, uma atuação possível deste conhecimento habitual? Ou se deve reconhecer que o conhecimento atual, do qual anteriormente se falou, não é senão uma atuação parcial e derivada do dito conhecimento habitual? Tomás de Aquino não é explícito sobre estes pontos. As respostas a várias dificuldades do artigo (notadamente: ad 1 in contrarium) sugerem-nos, contudo, que o conhecimento atual, embora só relativo à existência e não à essência da alma, está no prolongamento do conhecimento habitual: “a alma intelectiva conhece-se a si mesma pelo fato de existir nesta alma o que é preciso para que possa passar ao ato de se conhecer atualmente, percebendo que existe”.
Na Summa Theologica vê-se, de modo claro, um certo enrijecimento de Tomás de Aquino no sentido de uma aplicação mais estrita dos princípios do peripatetismo (Ia, Pa, q. 87. a.1). O corpo do artigo conclui só pelo conhecimento da alma pelo seu ato: “non ergo per essentiam suam sed per actum suum se cognoscit intellectus noster”. A razão desta afirmação nos é conhecida: uma coisa é inteligível na medida em que está em ato; ora, na ordem das coisas inteligíveis, nossa inteligência é pura potência. Como o faz no De Veritate, Tomás de Aquino distingue, em seguida, para a alma, um conhecimento particular (experimental) e um conhecimento universal (científico).
Lendo estes textos, não podemos nos furtar de perguntar se o conhecimento habitual e direto da alma teria sido aqui positivamente eliminado. Parece que se deva responder negativamente. Se, com efeito, pesarmos bem os termos com os quais o nosso Doutor caracteriza presentemente o conhecimento particular da alma, constataremos que a razão que o fundamenta é, como antes, a simples presença da alma a si mesma: “ad primam cognitionem de mente habendam, sufficit ipsa mentis praesentia”. Por outra parte, o termo deste conhecimento é aqui também a existência da alma e de nossas atividades e não sua natureza. O indivíduo particular percebe que tem uma alma intelectiva pelo fato de que toma consciência de sua atividade intelectual: “percipit se habere animam intellectivam ex hoc quod percipit se intelligere”. A intervenção do ato mediador é exigida, mas a razão última da consciência de si parece ser esta presença inteligível da alma a si mesma, significada pela noção do conhecimento habitual.
O caso da alma separada (cf. S. Th. Ia Pa, q. 89, a. 1). Considerando que, em nossa condição presente de união a estrutura profunda da alma intelectiva se encontra de certo modo velada, seria evidentemente desejável poder representar o estado da alma quando separada do corpo. Tomás de Aquino, com sua ousadia de metafísico, esforçou-se por realizar teoricamente esta experiência (cf. Ia Pa, q. 89). O que disse a esse respeito vai nos permitir melhor compreender a natureza de nossa vida intelectiva.
Num primeiro instante, encontramo-nos frente a um dilema. Ou a alma, como querem os platônicos, une-se ao corpo apenas de maneira acidental, reencontrando assim, quando separada do corpo, sua condição de espírito puro imediatamente adaptado aos inteligíveis; mas nesta hipótese não se vê qual a razão da união, que aparece como desvantajosa à alma; ou, então, a união é natural e, neste caso, parece impossível reconhecer-lhe qualquer atividade cognoscitiva depois da morte. Tomás de Aquino escapa desta dificuldade admitindo para a alma dois tipos de atividade intelectual, correspondendo a seus dois modos diferentes de existir, o de união a um corpo e o de separação do mesmo. Unida ao corpo, a alma intelectiva conhece por conversão às imagens. Separada dele, conhece à maneira dos espíritos, por conversão aos objetos que de si são inteligíveis. Mas, precisa nosso autor, e é o que dá toda a dimensão de sua doutrina, o modo de conhecer como o de existir do primeiro tipo são naturais à alma, enquanto que o modo de conhecer e o modo de existir do segundo devem ser chamados preternaturais:
“modus intelligendi per conversionem ad phantasmata est animae naturalis sicut et corpori uniri, sed esse separatum a corpore est praeter rationem suae naturae, et similiter intelligere sine conversione ad phantasmata est ei praeter naturam”.
O estado de união e a vida que lhe corresponde seriam definitivamente a condição melhor para o homem. Uma dúvida subsiste porém. Como pode a alma, que é radicalmente capaz de pensar à maneira dos espíritos puros, tirar proveito de um modo inferior de conhecer? Porque a alma, explica Tomás de Aquino, que é a última das substâncias intelectuais, não atingiria, só pelo modo de intelecção próprio às substâncias espirituais, conhecimentos suficientemente distintos e precisos. E assim, conclui, é bom para ela estar unida a um corpo e encontrar seu objeto comum à sombra das imagens. Resta-lhe, porém, que lhe é possível existir no estado de separação e ter então um outro modo de atividade intelectual.
Tal é, parece, a última palavra da filosofia de Tomás de Aquino sobre o problema da união da alma e do corpo e das consequências que daí decorrem quanto à atividade do homem.
Conclusões e corolários
Nossa vida presente é, portanto, naturalmente, a vida de um espírito encarnado, mas de um espírito cujas estruturas profundas são as de um espírito puro. Enquanto espírito encarnado, nossa alma se conhece por meio de seus atos, isto é, “per species”. Mas em sua complexão de puro espírito, encontra-se objetivamente e, de maneira imediata, presente à nossa potência intelectual: é o conhecimento habitual de que fala o De Veritate. Basta que se produza um ato de conhecimento abstrativo, e nossa alma inteligente capta-se imediatamente, não em sua natureza mas em sua existência, como princípio do conhecimento considerado. Tudo leva a crer que assistimos a uma atuação parcial desta aptidão fundamental de se captar a si mesma que o conhecimento habitual revela: “percipit anima se intelligere”. Radicalmente, seria, pois, enquanto espírito que a alma toma consciência de si. Rompido os elos que a ligam ao corpo, perceber-se-á diretamente como objeto, e sua estrutura preternatural, mas efetiva, de espírito separado manifestar-se-á plenamente. Tais são as perspectivas de conjunto nas quais convém interpretar a doutrina de Tomás de Aquino sobre o conhecimento da alma por si mesma.
Até onde se estende este conhecimento de si?
Com nossa existência captamos, evidentemente, nossa atividade interior, mas podemos dizer que atingimos nossas faculdades? Tomás de Aquino (q. 87, a. 2) precisa que só sua existência pode ser diretamente captada: tenho consciência de pensar ou de querer, mas as naturezas da inteligência e da vontade, como a da alma, permanecem-me escondidas.
Convém estender à atividade sensível esta consciência de si? Os atos de nossos sentidos não estão evidentemente presentes à nossa alma espiritual do mesmo modo como os da inteligência ou da vontade. É certo porém, Tomás de Aquino o reconhece, que nos percebemos como princípio de nossa vida sensitiva: “percipit anima se sentire”. Nosso psiquismo inferior está assim ligado ao mesmo “eu” ao qual se liga nosso psiquismo superior espiritual: o “eu” que sente é o mesmo que pensa. Se, pois, a natureza de nossa vida sensitiva não é diretamente percebida, deve-se contudo manter que a realidade e o princípio desta vida são atingidos por reflexão intelectual. A bem dizer, só existe o “eu” para uma tal consciência e é em relação a ela que todo o resto de nosso psiquismo torna-se propriamente nosso.
Algumas aproximações com as concepções mais modernas permitem-nos melhor apreciar a posição precedente.
Com Descartes, e a partir dele, a tendência mais constante foi a de se dar o primado ao conhecimento reflexivo e, por conseguinte, de fazer do “eu”, e de suas atividades, o objeto privilegiado do espírito humano, ficando assim o objeto exterior atingido apenas em segundo lugar e terminando mesmo por se confundir com a consciência. Convergem, neste ponto, os três grandes sistemas da metafísica francesa acima evocados: ideia clara e distinta por excelência (Descartes), o fato primitivo (Maine de Biran) e os dados imediatos (Bergson): o “eu” é substância pensante no primeiro caso, esfôrço motor voluntário no segundo e duração no terceiro. Em todos esses sistemas, a intuição para em um objeto interior à consciência. No idealismo alemão, o princípio primeiro é ainda o “eu” captado reflexivamente, mas este “eu” perde aqui toda consistência substancial, mesmo aquela suposta por um sujeito fluente e transitório, para não reter outra realidade além da posição primária e incondicionada de um ato de espírito.
Com o aristotelismo tomista, ao contrário, o objeto próprio da inteligência humana é a coisa material, exterior ao espírito. Doutrina mais modesta que as precedentes e que tem o encargo de explicar a assimilação pelo espírito de um dado que lhe é estranho, mas tendo a inapreciável vantagem de ser mais conforme os fatos. Assim a vida do espírito é antes exterioridade. Mas o espírito humano é também capaz de uma certa interioridade. A atividade intelectual é imanente e é reflexiva. Mais profundamente, existe em nós com que fundar uma vida pura de espírito, tornando-se o “eu”, para o pensamento, seu objeto imediato. Em nossa condição atual, esta última vida realiza-se só de maneira muito reduzida. Na condição de alma separada, será total, mesmo permanecendo sempre imperfeita. A metafísica da consciência primitiva e privilegiada do “eu” não é sem fundamento, mas a de Tomás de Aquino, mais modesta, é também mais objetiva e mais compreensível. [Gardeil]