ciência das letras

Para expor o princípio metafísico da “ciência das letras” (em árabe ilmul-huruf), Seyidi Mohyiddin Ibn Arabi, no El-Futuhatul-Mekkiyah, considera o universo como simbolizado por um livro: é o símbolo bem conhecido do Liber Mundi da Rosacruz e do Liber Vitae apocalíptico. Os caracteres desse livro são, em princípio, escritos todos simultânea e indivisivelmente pela “pena divina” (El-Qalamul-ilâhi); essas “letras transcendentes” são as essências eternas ou as ideias divinas. Como cada letra é, ao mesmo tempo, um número, podemos notar a concordância desse ensinamento com a doutrina pitagórica. Essas mesmas “letras transcendentes”, que são todas as criaturas, após terem sido condensadas originariamente na onisciência divina, desceram através do sopro divino às Unhas inferiores, compondo e formando o Universo manifestado. Aqui, impõe-se um paralelo com o papel que desempenham as letras na doutrina cosmogônica do Sepher Ietsirah. A “ciência das letras” tem, aliás, uma importância quase igual na cabala hebraica e no esoterismo islâmico. (Guénon)

Partindo desse princípio, pode-se compreender sem dificuldade que seja estabelecida uma correspondência entre as letras e as diferentes partes do Universo manifestado e, em particular, do nosso mundo. A existência de correspondências planetárias e zodiacais é, a esse respeito, bastante conhecida para que se torne dispensável insistir mais sobre ela; basta notar que isso coloca a “ciência das letras” em estreita relação com a astrologia considerada como ciência “cosmológica”. Por outro lado, em virtude da analogia constitutiva do “microcosmo” (el-kawnus-seghir) com o “macrocosmo” (el-kawnul-kebir), essas mesmas letras correspondem também às diferentes partes do organismo humano. A esse propósito, assinalaremos, de passagem, que existe uma aplicação terapêutica da “ciência das letras”, empregando-se cada letra de um modo específico para curar doenças que afetam especialmente o órgão correspondente.

Do que acaba de ser dito, conclui-se que a “ciência das letras” deve ser considerada em diferentes ordens que podem, em suma, referir-se aos “três mundos”: entendida em seu sentido superior é o conhecimento de todas as coisas no próprio princípio, enquanto essências eternas além de toda manifestação; no sentido que se poderia dizer médio, é a cosmogonia, ou seja, o conhecimento da produção ou da formação do mundo manifestado; finalmente, no sentido inferior, é o conhecimento das virtudes dos nomes e dos números, enquanto exprimem a natureza de cada ser; conhecimento que permite, a título de aplicação, exercer por seu intermédio, e em razão dessa correspondência, uma ação de ordem “mágica” sobre os próprios seres e sobre os acontecimentos que lhes dizem respeito. De fato, de acordo com o que expõe Ibn Khaldun, as fórmulas escritas, sendo compostas dos mesmos elementos que constituem a totalidade dos seres, têm, por isso, a faculdade de agir sobre eles. É por isso também que o conhecimento do nome de um ser, expressão de sua própria natureza, pode proporcionar um poder sobre ele. Essa aplicação da “ciência das letras” é habitualmente designada pelo nome símia. É importante notar que isso ultrapassa em muito um simples processodivinatório”. Pode-se, em primeiro lugar, por meio de um cálculo Qiisab) efetuado sobre os números correspondentes às letras e aos nomes, chegar à previsão de certos acontecimentos. Mas isso apenas constitui, de certo modo, um primeiro grau, o mais elementar de todos. É possível efetuar a seguir, sobre os resultados desse cálculo, mutações que deverão ter por efeito uma correspondente modificação nos próprios acontecimentos. Aqui ainda é necessário distinguir graus bem diferentes, como no caso do próprio conhecimento, do qual isto não é senão uma aplicação e um emprego. Quando essa ação se exerce apenas no mundo sensível, trata-se do grau mais inferior, e é nesse caso que se pode falar propriamente em “magia”. Mas é fácil conceber que se trata de uma coisa de ordem inteiramente distinta quando uma ação tem repercussão em mundos superiores. Neste último caso, estamos, por certo, na ordem “iniciática”, no estrito sentido da palavra. Só pode operar de forma ativa em todos os mundos aquele que chegou ao grau do “enxofre vermelho” (El-Kebritul-ahmar), designação que indica uma assimilação, que poderia a alguns parecer inesperada, da “ciência das letras” com a alquimia. Com efeito, essas duas ciências, entendidas em seu sentido profundo, são, na realidade, apenas uma. E o que uma e outra exprimem, sob aparências tão diferentes, nada mais é que o próprio processo de iniciação, que, além disso, reproduz rigorosamente o processo cosmogónico. A realização total das possibilidades de um ser efetua-se necessariamente passando pelas mesmas fases de realização da Existência Universal. (Guénon)