cidade

A cidade, disse Hegel, é a substância ética na qual os cidadãos têm sua existência espiritual efetiva. Nela eles têm seus valores, seus princípios e seus fins, a autojustificação de seus atos. Ela é o espírito de seu mundo, não uma ideia abstrata sobre a qual eles se regram, mas um sentido realizado como povo e consciente de si como cidadão do povo. Hegel chama este espírito Gemeinwesen: a essência comum ou o ser comum onde todos só existem na e pela comunidade. Gemein procede da raiz mei: mudar, trocar. A comunidade implica a troca cada um contra cada um através de todos, onde todos contam por um e um por todos. Cada um é nomeado no interior de uma pluralidade interna, cuja unidade é o número numerante – segundo o mais antigo sistema do número. A Unidade absoluta é a lei publicamente reconhecida que existe em si como substância comum de todos os atos e que é para si nos indivíduos onde ela se reflete. A cidade é um verdadeiro reino dos fins, mas dos fins realizados e conscientes de si. Assim o espírito da cidade é animado interiormente de um duplo movimento centrípeta e centrífugo: do Universal ao singular e do singular ao Universal. “Na forma do Universal, ele é a lei pública conhecida e os costumes atuais. Na forma da singularidade, ele é a certeza de si mesmo no indivíduo em geral” (Fenomenomogia do Espírito, II, 340). Em geral posto que trocável. [Maldiney]


Uma cidade é um ajuntamento durável e relativamente denso de população num espaço circunscrito: outrora muralhas separavam-na do campo, depois da transição dos arrabaldes; atualmente, os seus limites são muito mais indecisos, obrigando o geógrafo e o sociólogo a complicar a sua nomenclatura: centro, periferia, subúrbios, zona “urbana” (ao mesmo tempo cidade e campo), cidade satélite, megalópole, bairro de lata, etc. (Bastié, Dézert 1980). A cidade na sua forma tradicional já não é mais que uma malha, um do tecido urbano.

Densidade de população significa geralmente (mas nem sempre) acentuação da divisão do trabalho, complexidade e complementaridade das funções econômicas e das ocupações profissionais, diversificação dos estatutos sociais e das relações de classe, acompanhadas muitas vezes de fortes clivagens – ou até de “lutas urbanas” – entre o povo “gordo” e o povo “magro”, entre o poder e as minorias ativas. Predominando a urbanização (que quer dizer proliferação do tecido urbano e aumento da sua densidade média, especialmente em favor das grandes cidades) no séc. XX mais ainda que no séc. XIX, o sociólogo é tentado, por um lado, a medir o seu impacto sobre as outras dimensões da vida social (economia, migrações, progresso técnico, estabilidade política, religião, etc.) e, por outro lado, adotando a postura inversa, a considerá-la não já como a causa mas como a resultante desses mesmos fenômenos sociais. Nasceu dessa dupla preocupação uma literatura considerável (M. Halbwachs, P. Geddes, W. Sombart, M. Weber, G. Simmel, R. Park, E. Burgess, etc.). Mantém-se largamente descritiva com dificuldade em delimitar o seu objeto: é, de fato, o conjunto do funcionamento social que se pode qualificar de “urbano” nos grandes países industriais, onde o rural tende a reduzir-se e a encolher-se irremediavelmente. Por isso, parece realista atribuir um campo mais restrito à sociologia urbana, limitando-a ao estudo dos atores sociais (a sua origem, as suas atitudes, os seus comportamentos, etc.) que desempenham um papel direto na elaboração, funcionamento e crescimento do tecido urbano. Nesta óptica, a maioria dos trabalhos publicados em França desde os anos 60 inspirou-se numa problemática marxista (Lefebvre 1968). Apresentando-se doravante a especulação predial e os investimentos imobiliários como um dos domínios mais remuneradores para o capitalismo bancário, o conjunto dos atores interessados pela explosão urbana sofreriam a influência, direta ou indireta, do capitalismo financeiro e das suas exigências, a todos os níveis da vida social: formação, carreira, ideologia, etc. (Castells 1972). Esta sociologia atribui um lugar central aos “movimentos urbanos”, nascidos das contradições geradas pela especulação urbana. O urbanismo, esforço racional para adaptar a cidade aos seus habitantes, sofreria igualmente o impacto da ideologia dominante.

A partir dos anos 80, este tipo de interpretação esbate-se. A sociologia urbana toma cada vez mais consciência da identidade dos desafios urbanos em todos os países industriais, capitalistas ou socialistas. Interroga-se com uma crescente inquietação sobre as dificuldades enfrentadas pelas cidades do Terceiro Mundo que conhecem uma demografia galopante. [DS]


Os pontos de vista macrocósmico e microcósmico são interdependentes; o fato é que a “acrópole” (como é chamada por Platão) da cidade está dentro da pessoa e literalmente no “coração” da cidade. “O que há dentro desta Cidade de Deus (brahma-pura, um homem) é um santuário que contém o Céu e a Terra, o Fogo e o Vento, o Sol e a Lua, tudo que é possuído ou não; tudo que existe aqui está dentro dele.” Surge a pergunta: então que resta ou sobrevive quando esta “cidade” morre de velhice ou é destruída? cuja resposta é: sobrevive O Que não envelhece com a nossa inveteração e não morre quando “nós” morremos; Aquele é a “verdadeira Cidade de Deus”; Aquele (e de modo nenhum esta cidade perecível que consideramos o “nosso” eu) é o nosso Eu, que não envelhece e não morre nem é afetado pela “fome e sede” CU. VIII. 1.1-5, ligeiramente abreviado), “Aquele és tu” (ibid. VI.8.7); e “Em verdade, quem O vê, contempla-O e distingue-O, Ele, cujos jogos e esportes, folguedos e beatitude estão dentro daquele Eu e com aquele Eu (atman), é autônomo (svaraj, kreitton heautou, “que se autogoverna”) e se movimenta à vontade em qualquer mundo; 6 mas quem conhece o que está fora d’Ele é heterônomo (anyaraj, hetton heautou, sujeitado) e não se movimenta à vontade em nenhum mundo” (ibid., VII.25.2). (Coomaraswamy)


Em primeiro lugar, devemos notar que polis no grego e civitas no latim, que designam a cidade, correspondem respectivamente, pelas suas raízes, aos dois elementos que formam a palavra purusha, ainda que, em razão de certas mudanças fonéticas de uma língua para outra, isso possa não ficar claro à primeira vista. De fato, a raiz sânscrita pri ou pur torna-se nas línguas europeias ple ou pel, de modo que pura e polis são estritamente equivalentes; essa raiz exprime, do ponto de vista qualitativo, a ideia de plenitude (sânscrito puru e purna, grego pleos, latim plenus, inglês full), e, do ponto de vista quantitativo, a de pluralidade (grego polus, latim plus, alemão viel). Uma cidade, é evidente, só existe pela reunião de uma pluralidade de indivíduos que a habitam e constituem a “população” (o termo populus tem a mesma origem), o que já poderia justificar o emprego, para designá-la, de termos tais como os que estamos tratando. Esse, porém, é o aspecto mais exterior; muito mais importante, quando se quer ir ao fundo das coisas, é a consideração da ideia de plenitude (v. pleno-vazio).

Por outro lado, a palavra latina civitas deriva da raiz kei que, nas línguas ocidentais, equivale à raiz sânscrita shf (daí shaya); seu primeiro sentido é o de repouso (no grego keisthai, estar deitado), do qual resulta o de residência, ou morada estivei, que são os atributos de uma cidade. (Guénon)


O plano tradicional da cidade é uma imagem do Zodíaco, o que nos permite encontrar de imediato a correspondência dos pontos cardeais com as estações. De fato, como já explicamos em outra parte, o solstício de inverno corresponde ao norte; o equinócio da primavera, ao leste; o solstício de verão, ao sul; e o equinócio do outono, ao oeste. Na divisão em “quarteirões” cada um deles deverá naturalmente corresponder ao conjunto de três dentre os doze signos zodiacais, constituído por um dos signos solsticiais ou equinociais e por dois signos adjacentes a este. Haverá, portanto, três signos em cada “quadrante”, se a forma da muralha for circular, ou sobre cada lado, se for quadrangular. Esta última forma, aliás, é a mais particularmente apropriada para uma cidade, pois exprime a ideia de estabilidade que convém a um estabelecimento fixo e permanente, e também porque não se trata aí do próprio zodíaco celeste, mas apenas de sua imagem e de uma espécie de projeção terrestre. (Guénon)