No entanto, se nenhum dos poderes de nossa carne se põe em questão na questão “por que” enquanto, absorvido em sua efetuação imanente, ele se experimenta imediatamente como “bom”, como esquecer que tal poder pressupõe uma capacidade de poder, um “eu posso”, um Si, uma carne, enfim, que não advém a si mesma senão na vida? Ora, essa série de implicações não é fato da análise: ela remete a uma forma de passividade concretamente experimentada por cada um de nossos poderes em sua operação particular. Não é somente a capacidade de poder, que não vem de si mesmo, que o torna passivo com respeito a si mesmo, mas a especificidade desse poder que o marca com uma contingência irremediável. Pois por que é preciso que haja, nestes viventes transcendentais que somos nós, algo como a visão, a audição, o olfato, a motricidade, a atividade sexual com sua diferenciação que impõe em todas as partes seu poder atrativo e suas pulsões, [329] elas mesmas diferenciadas? Tudo se passa como se o aparecer do mundo não fizesse senão fazer ver, pôr literalmente a nu a contingência radical de uma diversidade de propriedades específicas já inscrita na carne. Essa diversidade não é secretamente experimentada a despeito de sua imanência — especificidade e contingência exibidas pelo corpo mais consubstanciais à carne e que não fazem senão traduzir uma passividade mais antiga? É o quadro dessa passividade radical que estende por todas as partes, através de seus estratos superpostos, seu reino invencível que se trata de lembrar; a possibilidade, para uma carne, de constituir, segundo o ensinamento do cristianismo, a via da salvação. (Michel Henry, MHE)