Que fazemos com a intuição pura? Agora vem a segunda exposição, que Kant chama “exposição transcendental”. Aqui também devo fazer um parêntese, porque nos chocamos com uma palavra abstrusa, com uma palavra rara, a palavra “transcendental”. Qual é o sentido da palavra “transcendental”? Vamos deixar de lado o sentido que tenha tido antes de Kant, porque nos levaria muito longe; seria muito interessante, mas nos levaria muito longe procurar o sentido desta palavra na História. Vamos deter-nos no sentido que tem a partir de Kant, e esse sentido nos será facilmente indicado se colocarmos em relação a palavra “transcendental” com a palavra “transcendente”, da qual é derivada. “Transcendente” é a palavra primitiva da qual se deriva “transcendental”. E que significa transcendente? Transcendente significa aquilo que existe em si e por si, independentemente de mim. Pois Kant para designar esta qualidade ou propriedade do objetivo que não é em si mesmo, mas que é o termo ao qual vai encaminhado o conhecimento, usa a palavra “transcendental”, ou seja, a palavra “transcendente” modificada. Transcendental é, pois, aquilo que antes no realismo aristotélico tínhamos chamado transcendente, porém despojado desse caráter de intuído metafisicamente, existente em si e por si, e convertido no objeto do conhecimento, dentro da correlação do conhecimento. É isto que Kant chama transcendental.
Pois bem; para que algo seja objeto do conhecimento é preciso que se cumpram certas condições. Essas condições têm que se produzir no sujeito, isto é, o sujeito tem que verificar certos atos especiais que confiram ao objeto a qualidade ou propriedade de ser objeto de conhecimento. Os “subpostos”, as condições que, partindo do sujeito, hão de realizar-se para que o objeto seja, com efeito, objeto do conhecimento na correlação, são as que Kant chama condições transcendentais da objetividade.
Neste sentido, em que vai consistir agora a exposição transcendental do espaço? Pois vai consistir em que Kant vai esforçar-se para demonstrar que esse espaço que o sujeito põe por própria necessidade das formas de apreensão, esse espaço a priori, independente da experiência — posto, “subposto”, pelo sujeito para que sirva de base h coisa — é a condição da cognoscibilidade das coisas, é a condição para que essas coisas sejam objetos de conhecimento; se não fosse por isso, estas coisas não seriam objetos de conhecimento, seriam coisas em si das quais não poderíamos falar, porque uma coisa em si é um absurdo radical, como dizia Berkeley; é uma coisa que não é conhecida nem pode ser conhecida, nem posso falar dela em absoluto. Assim é que agora Kant vai-se esforçar para demonstrar na exposição transcendental que a posição pelo sujeito, a “subposição” (a palavra exata seria a palavra grega hypóthesis, mas como tem outro sentido na ciência não a emprego, embora no seu sentido legítimo seja tese debaixo: pôr algo debaixo para que não caia outra coisa) do espaço é condição da cognoscibilidade das coisas. O conjunto de nossas sensações e percepções careceria de objetividade, não seria para nós objeto permanente e imóvel, proposto a nosso conhecimento, se não puséssemos, debaixo de todas essas percepções e sensações algo que lhes desse objetividade, que as tornasse objeto do conhecimento. Essas noções que nós pomos debaixo de nossas sensações e percepções para que se tornem objeto do conhecimento são várias; mas a primeira de todas é o espaço. Pois a exposição transcendental vai a isso.
Consideremos a geometria. A geometria não somente supõe o espaço no sentido de “subpor” (pôr debaixo dela), não somente o supõe como ponto de partida, mas antes constantemente está pondo o espaço. A prova está em que os conceitos da geometria, ou sejam, as figuras, encontramo-las constantemente numa intuição pura a priori. Quando chegamos a definir uma figura, a pensar uma figura, definimo-la pedindo ao leitor ou ao estudante de geometria que na sua mente com uma intuição puramente ideal, não sensível, construa a figura. Por conseguinte, o espaço puro não somente é o suposto primeiro da geometria mas o suposto constante da geometria, o conteúdo constante da geometria. Por isso diz Kant que o espaço puro está latente em toda a geometria, porque os conceitos geométricos não se definem, senão que se constroem. Mas, se nós depois passamos da geometria pura à geometria aplicada, deparamos com este fato particular: que esta geometria pura que estudamos com a mente pura e sem introduzir para nada a experiência, quando a aplicamos às coisas da experiência encaixa divinamente nelas; vemos que todas as coisas da experiência se adaptam à geometria pura, ou seja, que há uma espécie de harmonia perfeita entre aquilo que estudamos fechando os olhos à realidade sensível e aquilo que encontramos na realidade
sensível.
Retenhamos muito bem esta frase, que é capital para este ponto e para os que temos que tratar em várias outras lições; chegamos a esta conclusão: que as condições da possibilidade do conhecimento matemático são ao mesmo tempo condição da possibilidade dos objetos do conhecimento matemático. Toda dedução transcendental consistirá nisso: em que as condições para que um conhecimento seja possível imprimem ao mesmo tempo seu caráter aos objetos desse conhecimento, isto é, que o ato de conhecer tem duas faces. Por uma face consiste principal e fundamentalmente em pôr os objetos que logo vão-se conhecer; e, claro, ao pôr os objetos se imprimem neles os caracteres que depois, lenta e discursivamente, vai encontrando neles o conhecimento. Pomos, pois, nos objetos reais os caracteres do espaço e do tempo (que não são objetos, mas algo que nós projetamos nos objetos), e como os projetamos, injetamos-lhes a priori esse caráter de espaciais; depois encontramos constantemente na experiência esse caráter, dado que previamente lho injetamos. [Morente]