A passividade do homem com respeito ao mundo é dupla: diz respeito ao mundo como tal, ao seu horizonte ek-stático de visibilização, por um lado, e diz respeito ao conteúdo que se mostra em tal horizonte, por outro lado. A passividade dessas duas relações reside em sua sensibilidade. O conteúdo do mundo, os objetos, os processos materiais que o compõem não são sensíveis em si mesmos: são sistemas inertes que a física estuda. Eles só se tornam sensíveis porque nós nos relacionamos intencionalmente com eles por meio de cada um de nossos sentidos; mais fundamentalmente, porque o ultrapassamento intencional se move na vinda para fora de si desse horizonte de exterioridade pura. É com respeito a esse último que somos passivos, porque ele se dá a sentir a nós numa afeição primitiva que consiste no fato de que se mostra a nós e que, nele, cada coisa, por sua vez, se mostra. Assim se edifica, em Kant e em Heidegger, por exemplo, a possibilidade de uma afecção transcendental enquanto afecção fenomenológica pelo mundo e que define nossa passividade enquanto sensibilidade pura e ela mesma transcendental.
Ora, essa passividade, que é, afinal, a de cada carne, de cada Si, de cada vida com respeito a si mesma, recobre uma passividade ainda mais radical, na medida em que cada uma dessas vidas não é dada a ela senão na autodoação de Vida absoluta. Em sua radicalidade, tal passividade remete ao segredo oculto em cada vida, à sua fonte oculta: à vinda da Vida absoluta em seu Verbo como condição de cada vinda a nós mesmos — de nosso nascimento transcendental, de nossa condição de Filho. É essa passividade radical que abre, segundo o cristianismo, a via da salvação. (Michel Henry, MHE)