hierarquia dos valores

VIDE ontologia dos valores

Chegamos com isto à quarta categoria dessa esfera ontológica dos valores, e esta quarta categoria é a hierarquia. Os valores têm hierarquia. Que quer dizer isto? Há uma multiplicidade de valores, Já citei uma multidão deles. Estes valores múltiplos são todos eles valores, ou seja, modos do valer, como as coisas são modos de ser. Mas os modos do valer são modos da não-indiferença. Ora, o não ser indiferente é uma propriedade que em todo momento e em todo instante, sem faltar um pingo, tem que ter o valor. Logo a têm que ter também os valores nas suas relações múltiplas. E essa não-indiferença dos valores nas suas relações múltiplas, uns com respeito aos outros, é o fundamento de sua hierarquia. Compreender-se-á muito melhor esta categoria ontológica do valor, que chamo hierarquia, quando fizermos rapidamente uma classificação dos valores.

Vamos fazer, pois, uma classificação dos valores. O problema é difícil e não vou entrar a expor as dificuldades, porque nos levaria muito longe.

O problema de classificar os valores foi estudado por quase todos os filósofos contemporâneos que se ocuparam do valor.

Classificação dos valores
Vamos tomar provisoriamente uma classificação que anda por aí e que é provavelmente a menos incorreta, a mais aceitável de todas, que é a classificação de Scheler no seu livro O formalismo na ética e a ética material dos valores. Segundo esta classificação, poder-se-iam agrupar os valores nos seguintes grupos ou classes: primeiro, valores úteis; por exemplo, adequado, inadequado, conveniente, inconveniente. Depois, valores vitais; como, por exemplo, forte, fraco. Valores lógicos, como verdade, falsidade. Valores estéticos, como belo, feio sublime, ridículo. Valores éticos, como justo, injusto, misericordioso, desapiedado. E, por último, valores religiosos, como santo, profano.

Pois bem; entre essas classes ou grupos de valores existe uma hierarquia. Que quer dizer esta hierarquia? Quer dizer que os valores religiosos afirmam-se superiores aos valores éticos; que os valores éticos, afirmam-se superiores aos valores estéticos; que os valores estéticos afirmam-se superiores aos lógicos, e que estes por sua vez se afirmam superiores aos vitais, e estes por sua vez superiores aos úteis. E este afirmar-se superior, que quer dizer? Pois quer dizer o seguinte, nada mais que o seguinte: que se esquematicamente assinalarmos um ponto com o zero para designar o ponto de indiferença, os valores, seguindo sua polaridade, agrupar-se-iam à direita ou à esquerda deste ponto em valores positivos ou valores negativos e a maior ou menor distância do zero. Uns valores, os úteis, se afastarão se desviarão pouco do ponto de indiferença; estarão próximos do ponto de indiferença. Outros valores, o grupo seguinte, os vitais, se afastarão algo mais do ponto de indiferença. Quer dizer, que postos a escolher entre sacrificar um valor útil ou sacrificar um valor vital, sacrificaremos com mais gosto o valor útil que o valor vital, porque a distância em que se acham os valores úteis é mais próxima do ponto de indiferença. Menos nos importa jogar pela janela um saco de batatinhas que sacrificar um valor vital, por exemplo, um gesto bizarro. Mas estes valores vitais, por sua vez importam-nos menos que os valores intelectuais. Quer dizer, que os valores intelectuais se afastam mais do ponto de indiferença e são ainda menos indiferentes que os valores vitais, e assim sucessivamente.

Se nós tivermos que optar entre salvar a vida de uma criança, que é uma pessoa, e, portanto, contém valores morais supremos, ou deixar que se queime um quadro, preferiremos que se queime o quadro. Haverá quem não tenha a intuição dos valores estéticos e então preferirá salvar um livro de uma biblioteca antes do que um quadro. Isto é o que quer dizer a hierarquia dos valores.

No ápice das hierarquias coloca Scheler os valores religiosos. Que quer dizer isto? Pois quer dizer que para quem não seja cego aos valores religiosos (coisa que pode acontecer), para quem tenha a intuição dos valores religiosos estes têm hierarquia superior a todos os demais. Desta maneira chegamos a esta última categoria estrutural ontológica da esfera dos valores: a hierarquia,

E agora, para terminar vão duas observações de relativa importância para dar por terminada esta caminhada pela esfera dos valores.

A primeira observação é a seguinte: um estudo detido, pormenorizado, profundo, de cada um destes grupos de valores que vimos na classificação pode e deve servir de base — ainda que isto não o percebam os escritores cientistas — a um grupo ou a uma ciência correspondente a cada um desses grupos. De modo que, por exemplo, a teoria pura dos valores úteis constitui o fundamento da economia, saibam-no ou não os economistas. Se os economistas percebessem isto e estudassem a axiologia antes de começarem propriamente sua ciência econômica, e esclarecessem seus conceitos do valor útil, então veríamos quanto melhor fariam a ciência econômica.

Depois vêm os valores vitais. Pois bem; de que achamos falta, desde tantos anos, na ciência contemporânea, senão de um esclarecimento exato dos valores vitais que permitiria introduzir pela primeira vez método e clareza científica num grande número de problemas que andam dispersos por diferentes disciplinas e que não se sabe como tratar? Somente alguns espíritos curiosos e raros deles trataram. Por exemplo: a moda, a indumentária, a vestimenta, as formas de vida, as formas do trato social, os jogos, os esportes, as cerimônias sociais etc. Todas essas coisas têm que ter sua essência, sua regularidade própria, e, não obstante, hoje, ou não estão estudadas em absoluto ou estão em livros curiosos ou estranhos como alguns ensaios de Simmel ou em notas ao pé das páginas. E, não obstante, constituem todo um sistema de conceitos cuja base está num estudo detido dos puros valores vitais.

O resto é bem evidente. É bem evidente que o estudo detido dos valores lógicos serve de base à lógica. É evidente também que o estudo detido daquilo que são os valores estéticos serve de base à estética. É evidente também que o estudo dos valores morais serve de base à ética. E disto não há queixa, porque, efetivamente, na filosofia contemporânea a lógica, a estética e a ética têm fundamento numa prévia teoria desses valores.

Do mesmo modo a filosofia da religião não pode fundar-se senão num estudo cuidadoso, detido, dos valores religiosos. E hoje começa a haver também na literatura filosófica contemporânea uma filosofia da religião fundada na base de um prévio estudo dos valores religiosos. E posso citar um nome tanto mais grato quanto está por suas crenças religiosas muito próximo de nós — Gründler — que escreveu um ensaio sobre Filosofia da religião sobre a base feno-ontológica, quer dizer, sobre um estudo dos valores religiosos. Esta é a primeira observação.

A segunda observação enlaça-se com o que dizíamos na lição anterior (v. coisas ideais) refutando energicamente àqueles que acusam a ontologia contemporânea de partir em dois ou em três a unidade do ser. Relembre-se que tivemos de prestar atenção a essas críticas, segundo as quais distinguir o ser em ser real, ser ideal etc, é renunciar à unidade do ser. Relembre-se o que tivemos que responder àquelas críticas. Tivemos que fazer ver àqueles críticos que na série das categorias do ser real a primeira era o ser; e na série das categorias do ideal, a primeira era também o ser, e que, portanto, essa distinção ou divisão não atingia a raiz ontológica do ser, mas suas diversas modalidades. Agora deparamos com essa mesma crítica quando chegamos ao campo dos valores; porque nos dizem: vocês dividem_ aquilo que há em duas esferas incomunicadas: as coisas que são e os valores que vocês chegam a dizer que não são, mas que valem. Porém á ingênua esta crítica e pode dar-se por respondida. Precisamente porque os valores não são é que não atentam nem menoscabem em nada a unidade do ser. Dado que não são, mas que valem, que são qualidades necessariamente de coisas, estão necessariamente aderidos às coisas. Representam aquilo que na realidade há de valer. Não somente não se menoscaba nem se parte em dois a realidade mesma, antes, ao contrário, integra-se a realidade; dá-se à realidade isso: valer. Em troca, não a diminui nem a divide. Precisamente porque os valores não são entes, antes qualidades de entes, sua homogênea união com a unidade total do ser não pode ser posta em dúvida por ninguém. Teria que ser posta em dúvida se nós quiséssemos dar aos valores uma existência, um ser próprio, distinto do outro ser. Porém não fazemos tal, antes, ao contrário, consideramos que os valores não são, mas representam simples qualidades valiosas, qualidades valiosas; de quê? Pois das coisas mesmas. Aí está a fusão completa, a união perfeita com todo o restante da realidade.

Aliás, este problema da unidade do real é um problema ao qual ainda não posso dar uma resposta plenamente satisfatória, por uma razão: porque ainda nos resta o último objeto. Resta-nos por estudar o último objeto daqueles em que dividimos a ontologia, e este último objeto, precisamente é aquele que tem no seu seio a raiz da unidade do ser. Resta-nos por estudar a vida como objeto metafísico, como recipiente em que há tudo isso que enumeramos: as coisas reais, os objetos ideais, e os valores. Resta-nos ainda a vida como o recipiente metafísico, como o estar no mundo. É essa unidade ou objeto metafísico, que é a vida, que estudaremos na próxima lição; e nela, então, encontraremos a raiz mais profunda dessa unidade do ser. [Morente]