O a priori fenomenológico é o próprio vivido, pois que é «nele» que tudo é visado e conhecido. Mas este a priori não é o de uma consciência, e menos ainda o de uma natureza humana que imporia ao mundo da experiência a sua estrutura própria. Na história da filosofia moderna, um tal a priori foi estabelecido por Kant, ou pelo menos retido na versão vulgarizada do kantismo. Mas, se a consciência é qualquer orientação para a coisa, ela não «possui» qualquer a priori que possa impor. As primeiras pesquisas de Husserl sobre a lógica pura e a ciência mostram, pelo contrário, que o a priori formal é, de algum modo, reencontrado pela consciência, não retido nela, ou ainda que «a norma do matemático está nas matemáticas, a do lógico na lógica». Todavia, o reconhecimento deste a priori não é inútil, serve mesmo para Husserl de motivo determinante para compreender e situar o que é o a priori do vivido. Neste último não se trata, pelo menos inicialmente, quando se segue o método fenomenológico e o seu desenvolvimento ao longo da obra de Husserl, da anterioridade de «a vida» sobre a ciência. Pois que «o vivido» não forma uma massa fluente e indistinta relativamente à fixação dos conceitos. Este a priori também não é o do começo do saber na certeza subjetiva. Em virtude da intencionalidade da consciência, trata-se aí de um a priori estrutural de outra ordem, que pode caracterizar-se pela correlação existente entre os vividos e os objetos visados neles: «mas se se volta o interesse para a multiplicidade do fazer subjetivo, para todo o encadeamento da vida subjetiva, na qual a matemática nasce no matemático (exemplo que pode ser transposto para qualquer objeto), define-se uma orientação correlativa» (Husserliana, T. ix). Este a priori da correlação definirá uma tarefa completamente concreta e nova, a de mostrar ponto a ponto na reflexão os vividos, que fazem que qualquer coisa possa intervir e apresentar-se como objeto. Há aí, portanto, para a constituição da fenomenologia como ciência a indicação de um método universal e rigoroso. A interrogação radical sobre as categorias de objetos correspondendo a priori a modos de consciência definidos segundo esses objetos abre à ciência apriorística «um novo mundo», o da multiplicidade das diferenças «internas». [Schérer]
…o resultado concreto da metafísica da representação (v. metafísica heideggeriana) é o de instaurar, na vida cotidiana, a dualidade do vivido e do construído. O vivido é tudo aquilo que experimentamos de maneira ingênua, espontânea, nesta atitude natural de abertura em relação ao mundo, constituindo o que podemos chamar de o movimento da existência. Por oposição a essa atitude natural, a atitude científica consiste em substituir o vivido por construções que, por mais fundadas que sejam, possuam um caráter artificial. O vivido é aquilo que constitui o objeto de nossa celebração: aquilo que se diz na linguagem da poesia, que é justamente a forma de linguagem na qual celebramos o mundo. [Ladrière]