mestre-discípulo

As atitudes entre o mestre hindu e o discípulo inclinado aos seus pés estão determinadas pelas exigências desta suprema tarefa de transformação. O problema que os ocupa é produzir uma espécie de transmutação alquímica da alma. O discípulo tem que sair da escravidão, dos limites da ignorância e imperfeição humanas e transcender o plano da existência terrena, não através da mera compreensão intelectual, mas por meio de uma mudança de coração, uma transformação que atinja o âmago de sua existência.

Há uma graciosa fábula popular que ilustra esta ideia pedagógica. Encontramo-la entre os ensinamentos do célebre santo hindu do século XIX, Sri Ramakrishna. Relatos singelos aparecem frequentemente nos discursos dos sábios orientais, circulam no saber comum do povo e são conhecidos por todos desde a infância. Levam as lições da atemporal sabedoria da índia aos lares e corações das pessoas, tornando-se, com o passar dos milênios, patrimônio da comunidade. De fato, a Índia é uma das grandes pátrias da fábula popular e muitas destas foram levadas para a Europa durante a Idade Média. A vivacidade e nitidez das imagens gravam fundo no íntimo das criaturas os aspectos mais importantes do ensinamento. São como pontos fixos sobre os quais podemos desenvolver um sem-número de raciocínios abstratos. A fábula do tigre representa apenas um dos muitos recursos orientais para que as lições sejam assimiladas e guardadas na memória.

O exemplo em questão é o de um filhote de tigre que havia sido criado entre cabras mas que, através da esclarecedora orientação de um mestre espiritual, descobre sua própria e insuspeita natureza. Prenhe e balofa, sua mãe havia passado vários dias a procura de uma presa sem nada conseguir, até que deparou com um rebanho de cabras selvagens. A tigresa estava faminta e isto pôde explicar a violência da sua investida. O esforço do ataque precipitou o parto e ela acabou morrendo de completo esgotamento. As cabras, que haviam se dispersado, retornaram ao lugar e lá encontraram um filhote de tigre choramingando ao lado de sua mãe. Levadas pela compaixão maternal, adotaram a débil criatura; amamentaram-na juntamente com suas próprias crias e dela cuidaram ternamente. O animal cresceu e sobreveio a recompensa pelos cuidados dispensados, pois o pequeno companheiro aprendeu a linguagem das cabras, adaptou sua voz àquele som suave e mostrou tanto afeto quanto qualquer cabrito. A princípio, teve alguma dificuldade para mastigar com seus dentes pontiagudos as tenras folhas do pasto, mas logo se acostumou. A dieta vegetariana o mantinha enfraquecido, conferindo ao seu temperamento uma notável doçura.

Certa noite — quando o órfão, crescido entre cabras, já havia alcançado a idade da razão — o rebanho foi atacado, desta vez, por um velho e feroz tigre. As cabras se dispersaram, porém o jovem permaneceu onde estava, sem medo ainda que surpreso. Achando-se face a face com a terrível criatura da selva, fitou-a estupefato. Passado o primeiro impacto, começou a tomar consciência de si. Desamparado, berra, arranca folhas de pasto e se põe a mastigar, ante o olhar perplexo do outro.

De repente, o poderoso intruso pergunta:

— Que fazes aqui entre cabras?! Que estás mastigando?!

A resposta foi um berro. O outro, indignado, disse num rugido:

— Por que emites este som estúpido?!

E antes que o pequeno pudesse responder, apanhou-o pelo cangote e o sacudiu como se quisesse fazer-lhe recobrar a lucidez. O tigre da selva carregou o assustado animal até um lago próximo, soltando-o na margem e obrigando-o a olhar para a superfície espelhada da água, então iluminada pela lua.

— Veja estas duas imagens! Não são semelhantes? Tens a cara típica de um tigre, é como a minha. Por que te iludes pensando ser um cabrito?! Por que berras?! Por que mastigas pasto?!

O tigrezinho, incapaz de responder, continuava a olhar espantado comparando as duas imagens refletidas. Inquieto, apoiou-se numa e logo noutra pata, e lançou um grito de aflitiva incerteza. A velha fera novamente o carregou porém agora até seu covil, onde lhe ofereceu um pedaço de carne crua e sangrenta, sobra de uma refeição anterior. Ante a inusitada visão, o jovem tremeu de repugnância mas o velho, ignorando o fraco gesto de protesto, ordenou rudemente:

— Coma! Engula!

O outro resistiu, porém a horripilante carne foi forçada a passar por entre seus dentes; o tigre vigiava atentamente seu aprendiz que tentava mastigar e preparava-se para engolir. Sua não-familiaridade com a consistência da carne causava-lhe certa dificuldade, e estava prestes a emitir outro débil berro quando começou a experimentar o gosto do sangue. Excitado, devorou o restante com avidez, sentindo um prazer incomum à medida que o novo alimento descia-lhe pela garganta e atingia o estômago. Uma força estranha e quente irradiava de suas entranhas trazendo-lhe uma sensação eufórica e embriagadora. Estalou a língua, lambeu o focinho satisfeito e, erguendo-se, deu um largo bocejo como se estivesse despertando de uma longa noite de sono — uma noite que o manteve sob feitiço por anos e anos. Espreguiçando-se, arqueou as costas, estendeu e abriu as garras. Sua cauda fustigava o solo e, de súbito, irrompeu de sua garganta o triunfal e aterrorizante rugido de um tigre.

O inflexível mestre, que estivera observando de perto, sentia-se recompensado. A transformação, de fato, acontecera. Ao cessar o rugido, perguntou severamente:

Agora realmente sabes quem és?

E para completar a iniciação de seu jovem discípulo no saber secreto de sua própria e verdadeira natureza, acrescentou:

— Venha! Vamos caçar juntos pela selva. (Zimmer)


As atitudes entre o mestre hindu e o discípulo inclinado aos seus pés estão determinadas pelas exigências desta suprema tarefa de transformação. O problema que os ocupa é produzir uma espécie de transmutação alquímica da alma. O discípulo tem que sair da escravidão, dos limites da ignorância e imperfeição humanas e transcender o plano da existência terrena, não através da mera compreensão intelectual, mas por meio de uma mudança de coração, uma transformação que atinja o âmago de sua existência.

Há uma graciosa fábula popular que ilustra esta ideia pedagógica. Encontramo-la entre os ensinamentos do célebre santo hindu do século XIX, Sri Ramakrishna. Relatos singelos aparecem frequentemente nos discursos dos sábios orientais, circulam no saber comum do povo e são conhecidos por todos desde a infância. Levam as lições da atemporal sabedoria da índia aos lares e corações das pessoas, tornando-se, com o passar dos milênios, patrimônio da comunidade. De fato, a Índia é uma das grandes pátrias da fábula popular e muitas destas foram levadas para a Europa durante a Idade Média. A vivacidade e nitidez das imagens gravam fundo no íntimo das criaturas os aspectos mais importantes do ensinamento. São como pontos fixos sobre os quais podemos desenvolver um sem-número de raciocínios abstratos. A fábula do tigre representa apenas um dos muitos recursos orientais para que as lições sejam assimiladas e guardadas na memória.

O exemplo em questão é o de um filhote de tigre que havia sido criado entre cabras mas que, através da esclarecedora orientação de um mestre espiritual, descobre sua própria e insuspeita natureza. Prenhe e balofa, sua mãe havia passado vários dias a procura de uma presa sem nada conseguir, até que deparou com um rebanho de cabras selvagens. A tigresa estava faminta e isto pôde explicar a violência da sua investida. O esforço do ataque precipitou o parto e ela acabou morrendo de completo esgotamento. As cabras, que haviam se dispersado, retornaram ao lugar e lá encontraram um filhote de tigre choramingando ao lado de sua mãe. Levadas pela compaixão maternal, adotaram a débil criatura; amamentaram-na juntamente com suas próprias crias e dela cuidaram ternamente. O animal cresceu e sobreveio a recompensa pelos cuidados dispensados, pois o pequeno companheiro aprendeu a linguagem das cabras, adaptou sua voz àquele som suave e mostrou tanto afeto quanto qualquer cabrito. A princípio, teve alguma dificuldade para mastigar com seus dentes pontiagudos as tenras folhas do pasto, mas logo se acostumou. A dieta vegetariana o mantinha enfraquecido, conferindo ao seu temperamento uma notável doçura.

Certa noite — quando o órfão, crescido entre cabras, já havia alcançado a idade da razão — o rebanho foi atacado, desta vez, por um velho e feroz tigre. As cabras se dispersaram, porém o jovem permaneceu onde estava, sem medo ainda que surpreso. Achando-se face a face com a terrível criatura da selva, fitou-a estupefato. Passado o primeiro impacto, começou a tomar consciência de si. Desamparado, berra, arranca folhas de pasto e se põe a mastigar, ante o olhar perplexo do outro.

De repente, o poderoso intruso pergunta:

— Que fazes aqui entre cabras?! Que estás mastigando?!

A resposta foi um berro. O outro, indignado, disse num rugido:

— Por que emites este som estúpido?!

E antes que o pequeno pudesse responder, apanhou-o pelo cangote e o sacudiu como se quisesse fazer-lhe recobrar a lucidez. O tigre da selva carregou o assustado animal até um lago próximo, soltando-o na margem e obrigando-o a olhar para a superfície espelhada da água, então iluminada pela lua.

— Veja estas duas imagens! Não são semelhantes? Tens a cara típica de um tigre, é como a minha. Por que te iludes pensando ser um cabrito?! Por que berras?! Por que mastigas pasto?!

O tigrezinho, incapaz de responder, continuava a olhar espantado comparando as duas imagens refletidas. Inquieto, apoiou-se numa e logo noutra pata, e lançou um grito de aflitiva incerteza. A velha fera novamente o carregou porém agora até seu covil, onde lhe ofereceu um pedaço de carne crua e sangrenta, sobra de uma refeição anterior. Ante a inusitada visão, o jovem tremeu de repugnância mas o velho, ignorando o fraco gesto de protesto, ordenou rudemente:

— Coma! Engula!

O outro resistiu, porém a horripilante carne foi forçada a passar por entre seus dentes; o tigre vigiava atentamente seu aprendiz que tentava mastigar e preparava-se para engolir. Sua não-familiaridade com a consistência da carne causava-lhe certa dificuldade, e estava prestes a emitir outro débil berro quando começou a experimentar o gosto do sangue. Excitado, devorou o restante com avidez, sentindo um prazer incomum à medida que o novo alimento descia-lhe pela garganta e atingia o estômago. Uma força estranha e quente irradiava de suas entranhas trazendo-lhe uma sensação eufórica e embriagadora. Estalou a língua, lambeu o focinho satisfeito e, erguendo-se, deu um largo bocejo como se estivesse despertando de uma longa noite de sono — uma noite que o manteve sob feitiço por anos e anos. Espreguiçando-se, arqueou as costas, estendeu e abriu as garras. Sua cauda fustigava o solo e, de súbito, irrompeu de sua garganta o triunfal e aterrorizante rugido de um tigre.

O inflexível mestre, que estivera observando de perto, sentia-se recompensado. A transformação, de fato, acontecera. Ao cessar o rugido, perguntou severamente:

Agora realmente sabes quem és?

E para completar a iniciação de seu jovem discípulo no saber secreto de sua própria e verdadeira natureza, acrescentou:

— Venha! Vamos caçar juntos pela selva. (Zimmer)