Reunindo dois temas complementares e três personagens históricas, o mito de D. Juan conduz seu herói da devassidão à santidade. O primeiro tema, encenado por Tirso de Molina, é o de um sedutor convidando um morto a jantar. O libertino D. Juan Tenório mata em duelo D. Gonzalo de Ulhoa, comendador de Calatrava, depois de ter seduzido sua filha. Tendo ido injuriar sua vítima na capela do convento franciscano, onde ela havia sido enterrada, é esmagado pela queda da estátua do comendador. Na realidade, os frades, desejosos de vinga a morte de seu benfeitor, haviam matado D. Juan, contando em seguida que ele tinha sido levado ao inferno pela estátua milagrosamente animada. 0 segundo tema do mito é o já muito bem conhecido do diabo transformado em eremita, do sedutor regenerando-se em convertido, seguindo-se uma aventura realmente vivida em outros tempos pelo abade de Rance ou por Charles de Foucald, e poeticamente encenada por Milosz.
Ora, essa personagem sedutora, de múltiplas faces, realmente existiu mas em episódios parcelados. O herói de Tirso tomou seu nome e seu prenome emprestados a dois nobres contemporâneos do poeta, um Cristobal de Tenório que seduziu e raptou uma das filhas de Lope da Vega, e o outro D. Juan de Tassis, grande escudeiro de Filipe IV da Espanha, amante declarado da rainha e que no seu tempo passou, dizia uma de suas admiradoras, pelo “mais perfeito Caballero” que jamais se viu.
Quanto ao devasso que virou devoto, deve-se aí reconhecer Miguel Manara, grande fidalgo andaluz que consternou Sevilha com seus escândalos. De volta de uma orgia, acreditou ver passar por uma ruela escura õ seu próprio cadáver a ser enterrado. Foi uma espécie de alucinação à la Musset. Com o susto, ele caiu em si, converteu-se, recebeu hábito no Hospital da Caridade, cujos irmãos tinham como missão assistir os condenados à morte em suas últimas vigílias e acompanhá-los ao suplício. Chegou a pedir para ser enterrado na soleira do cemitério, para que seus despojos fossem permanentemente calcados aos pés da multidão e quis que se mandasse gravar no seu túmulo: “Aqui jazem os restos do pior homem que já existiu neste mundo”. Tão orgulhosa modéstia deve tê-lo estacionado a caminho da santidade, pois não se deu andamento ao processo de canonização de que foi objeto. No entanto, esse investigador do amor absoluto havia descoberto a via iniciática da caridade. (Benoist)