A técnica costuma ser emparelhada à ciência. Também de uma forma imprecisa costuma-se abreviar pelo termo “técnica” ou “tecnologia” a sistematização do emprego da maquinaria pesada que se tornou corrente depois da Revolução Industrial no século XVIII. Justifica-se tal emprego do termo pelo caráter “explosivo” que parece ter tido o desenvolvimento e a aplicação dos teares mecânicos, da máquina a vapor, da tecnologia do aço na Inglaterra nos últimos trinta anos do século XVIII. Exporemos a seguir as opiniões de Adam Smith, Ricardo, Marx, Spengler e Heidegger a respeito. Deve-se notar, a princípio, que enquanto Adam Smith não distingue entre o instrumento auxiliar do trabalho e a máquina, Ricardo mostra (economicamente) um peculiar efeito que tem a máquina, e não o instrumento; Marx separa ontologicamente o instrumento da máquina, Spengler liga-os à noção de “econômico” e à ciência quantitativa ocidental, e Heidegger elucida a visão implícita à tecnologia. Adam Smith. Para Adam Smith, que escrevia (1776) no momento em que se iniciava a Revolução Industrial, não há diferença entre o instrumento do qual se serve o artesão e o tear com o qual trabalha o operário. Isto é, o uso da máquina, para Smith, não havia ainda se individualizado enquanto “tecnologia”; anterior à máquina, e constituindo uma categoria econômica mais fundamental, existia para Smith a divisão do trabalho. Assim sendo, no seu livro The Wealth of Nations não há capítulo especial sobre a maquinaria, e as referências a respeito se encontram no capítulo inicial da obra, onde Smith relaciona a divisão do trabalho ao emprego da máquina: “em consequência da divisão do trabalho, a atenção total de cada homem é naturalmente dirigida para algum objeto muito simples. Deve-se portanto esperar que eventualmente cada uma das pessoas trabalhando nos diversos ramos de atividades encontre métodos mais simples e mais fáceis para a execução de sua atividade específica”. Ora, deste trecho vê-se como Smith compreendia ser “natural” o emprego da máquina pelo homem, constituindo esta naturalidade na melhoria das condições de execução do serviço. O agente desta melhoria era o indivíduo que, ligado a dada atividade, era capaz de dar sugestões e desenvolver ideias úteis no sentido de aumentar a eficiência da sua tarefa. Ora, deve-se notar que Adam Smith repetia, com estas observações, o que estava acontecendo na Inglaterra naquela época: as grandes invenções de homens como Arkwright, Watt, ou, uns trinta anos depois, Krupp na Alemanha, foram resultado de pessoas diretamente empenhadas na atividade para cujo desenvolvimento eles vieram tanto a colaborar. Mas os exemplos citados mostram bem de que forma estes criadores de Smith se enquadraram na sociedade após a aceitação de seu invento — como capitalistas! E o que ocorreu a Arkwright e a Krupp há duzentos anos ocorreu com Henry Ford, e com os inventores da Polaroid e da Xerox ainda hoje.
David Ricardo. Quase cinquenta anos depois de Adam Smith, Ricardo, na terceira edição de seu livro mais importante, vê necessário incluir um capítulo sobre as relações^ entre a maquinaria e os processos econômicos. No início deste capítulo, Ricardo faz uma curiosa observação, que bem mostra como somente após a Revolução Industrial foi possível compreender a estranheza de que se revestia o desenvolvimento tecnológico: nos diz ele que inicialmente supunha ser o emprego da maquinaria benéfico para a totalidade da população de um país, mas um exame mais cuidadoso levou-o a concluir que é possível ser bastante prejudicial aos operários o desenvolvimento tecnológico. A argumentação de Ricardo é toda ela baseada numa situação econômica de grande artificialidade (ou simplicidade), mas suas conclusões — talvez baseadas na constatação empírica do pauperismo no qual viviam os trabalhadores ingleses, e racionalizadas pelo argumento abstrato — possuem extrema importância. Pois elas ameaçam seriamente a “naturalidade” que Adam Smith via na máquina — a menos que o caminho “natural” benéfico fosse na realidade uma armadilha maléfica. Ricardo mostra que o uso da maquinaria, embora aumente o produto líquido de uma nação, pode diminuir o seu produto bruto. Como ” a capacidade de sustento da população depende sempre do produto bruto, e nunca do produto líquido, haverá necessariamente uma diminuição na demanda da força de trabalho, a população se tornará redundante e a situação das classes trabalhadoras será de abandono e pobreza”.
Karl Marx. A “naturalidade” aparente que possui a tecnologia será desvelada no seu significado oculto por Marx. Seus trabalhos circulam em torno da crítica dos conceitos e categorias empregados pela economia política dos Smith e Ricardo e do processo de formação e desenvolvimento do capital, cuja parte fixa representa o reservatório tecnológico do produtor, a maquinaria. Marx é, muito legitimamente, um pensador da técnica,conforme o chamou Kostas Axelos, e podemos traçar a sua preocupação a respeito desde as obras de juventude até o Capital. Um slogan motivador serve de traço de união entre as suas obras, e ao mesmo tempo revela o que para Marx era a situação ontológica da tecnologia: trata-se de “um poder estranho” frente ao operário. Esta expressão, encontrável sobretudo nos Manuscritos Parisienses de 1844, nos cadernos de apontamentos de 1857/58, publicados sob o título de Grundrisse, e nos três volumes do Capital (1868), destaca a essencial inaturalidade que possui a técnica frente ao indivíduo. Primeiro, trata-se do produto manufaturado que o operário produz mas que não lhe pertence: este produto (industrial, lhe é alieno, estranho. Esta é a posição de 1844. Nos Grundrisse Marx mostra o por quê desta estranheza e aos mesmo tempo revela a situação complementar ao instrumento mediador entre o operário e seu trabalho, de Adam Smith. Numa grande fábrica, é o operário que serve agora de intermediário entre a máquina como sujeito e o objeto sendo trabalhado. Diz Marx: “considerado no processo de produção do capital, o intrumento de trabalho sofre notáveis metamorfoses, das quais a última é a máquina, ou melhor, um sistema automatizado de maquinaria”. E continua: “a máquina não se revela de modo algum como instrumento de trabalho do trabalhador individual. A diferença entre ambos não aparece jamais como sendo, quando do caso do instrumento de trabalho, a intermediação entre a atividade do trabalhador e seu objeto. Ao contrário; a atividade do trabalhador está ajustada de tal maneira que este agora serve de intermediário entre a ação da máquina e a matéria-prima, observando-a e cuidando para que funcione sem problemas”. E o que é a máquina, então? É um “virtuose, com alma própria”, e a ciência que cria a máquina torna-se estranha ao seu próprio operador; a máquina é a reificação do conhecimento científico, uma reificação que a transforma num enigma para o operário que a ela serve, e que gera, hoje em dia, as elucubrações mitológicas em torno de computadores, leiseres e reatores nuclares.
Oswald Spengler. Depois de Marx, muitas discussões envolveram o problema da tecnologia. Vale pena citarmos o alemão Ernst Junger, que muito influenciou Heidegger, e as críticas de Lukács ao racionalismo no seu livro História e Consciência de Classe. Um pouco anterior a ambos está Oswald Spengler. Criador de uma teoria impressionante da história (embora mais bonita do que convincente), Spengler se revela nas suas análises de detalhe como um observador fantasticamente lúcido. Seu livro sobre a técnica data dos primeiros anos da década de trinta, e embora sua visão (pseudo-nietzscheana) da tecnologia como sendo a consequência última do comportamento predatório do animal–homem esteja algo démodée, duas ou três observações do autor nos chocam em sua atualidade. Spengler vê, muito nitidamente, a conexão entre tecnologia e poluição; destaca ainda (ou prevê, num tempo em que Hitler não havia subido ainda ao poder, apoiado pela classe média e pelo operariado alemão) que haverão revoltas “de aspectos inumeráveis — desde a sabotagem sob a forma de greve até o suicídio” contra a vida estandardizada que nos impõe a civilização tecnológica. E temos que nos lembrar dos slogans do Maio de 1968 na França, ou dos suicídios públicos como forma atual de protesto. Finalmente, numa conclusão sem” paralelo, Spengler descreve o fim da técnica, ou seja, da civilização fáustica: “para as pessoas de cor a técnica nada mais é que uma arma em sua luta contra a civilização fáustica, da mesma espécie que um ramo de árvores, que se joga fora após utilizado. Esta técnica maquinista desaparecerá com a civilização fáustica, e, um dia, seus despojos estarão espalhados pelo mundo, esquecidos: nossas vias férreas e nossos navios, tão fósseis quanto as vias romanas e a muralha da China; nossas cidades gigantes e nossos arranha-céus, em ruina como Mênfis e Babilônia”.
Nas últimas páginas de A Decadência do Ocidente, que precedem de uma década o ensaio sobre a técnica, Spengler aprofunda a conexão entre o surgimento da economia política enquanto disciplina, o surgimento da burguesia, e a ciência e a técnica ocidentais. São todas consequência de um movimento cultural que, por exemplo, passa a reconhecer no dinheiro não mais um valor, uma quantidade, mas sim uma função, o crédito. Esta mesma passagem do estático ao dinâmico, da moeda que também é objeto de visível valor à moeda compreendida como crédito, e analisada (pelas taxas de juros, projeções econômicas, análises de mercado, etc.) como possibilidade de riqueza futura constituirá a essência da tecnologia moderada, que é compreendida como “processo” e “crescimento”. Após comentar uma citação onde se compara o espírito da contabilidade ao espírito das cosmogonias de Galileu e Newton, Spengler sintetiza numa frase o que é a contabilidade florentina: “a contabilidade é a análise do espaço dos valores, referida a um sistema de coordenadas cuja origem é a “Firma”. Mas o que torna possível este espírito, esta ideologia do progresso e do crescimento? Numa antevisão do que dirá Heidegger, Spengler localiza a possibilidade da técnica numa ontologia que compreende a linguagem como coleção de signos e indicadores, e que assim separa o falar da linguagem. Só quando o falar e a linguagem são cortados um do outro pode-se compreender a linguagem como cálculo, e torna-se possível a ciência quantitativa ao ocidente e a técnica. Culminando sua análise, Spengler nos fala da figura mítica que acompanha a imposição de técnica sobre o mundo: o engenheiro, o “sábio sacerdote da máquina”. E quem é o engenheiro? É aquele que dispõe do conhecimento reificado na máquina, e inacessível ao operário que a maneja. Mas é também o tecnocrata que lida com populações como se lidesse com cobaias, ou a figura ideologizada do cientista em seu laboratório incompreensível. A . Martin Heidegger. Embora haja atualmente uma tendencia a se reduzir Heidegger a um “pensador da técnica”, um exame cuidadoso de sua obra — onde são constantes no entanto as referências à tecnologia e à ciência contemporânea — mostra como tal redução é perigosa. Mas a meditação sobre a tecnologia constitui uma das várias possibilidades de abordagem das questões centrais para Heidegger. O ensaio mais famoso a este respeito é a conferência A Questão da Técnica, feita em fins da década de quarenta, e publicada em duas das obras de Heidegger. Resumamos suas ideias. Para Heidegger, responder à questão da técnica não significaria descrevê-la como “um meio para certos objetivos” ou como “uma criação do homem”. A questão da técnica procura a sua essência. Para descobri-la, Heidegger faz considerações em torno da palavra grega poiesis, de onde herdamos etimologicamente “poesia”, e que ele traduz por produzir (que, aproximadamente, corresponde ao her-vor-brin-gen do original heideggeriano). Mas o que se pro-duz? Uma planta é pro-duzida na natureza; melhor, uma flor que desabrocha se pro-duz a si mesma. Uma obra de arte é pro-duzida pelo artista. Mas a pro-dução pressupõe algo que ainda não existia, que estava fechado, velado, não-existente, e que a póiesis tornou real, existente, presente diante de nós. Ora, como reconhece a técnica ao mundo? Como um conjunto de coisas sempre presentes, sempre existentes e abertas diante de nós. Heidegger neste ponto mostra como a essência da técnica precede a técnica — pois reconhecer o mundo como um conjunto reificado de objetos é o pressuposto de qualquer ciência quantitativa, e a ciência moderna antecede de uns duzentos anos a tecnologia. Se a essência da técnica mostra as coisas do mundo como presenças eternas, e não como um movimento entre o desvelar-se e o velar-se, ela poderá ser chamada a constelação (que nos sugere o alemão Ge-Stell de Heidegger, referido tanto ao sentido da palavra Gestell, “esqueleto, suporte”, aparentado a Gestalt, “configuração”, quanto à etimologia implícita na palavra: Ge-, “com-” e Stell-(en), “colocar”). Heidegger, citando nesta altura um verso de Hölderlin, mostra que há um perigo na compreensão das coisas dentro da essência da técnica: ela esquece que as coisas também podem ser vistas como uma oscilação entre a presença e a ausência, e que a passagem da ausência, à presença é engenhada pela poiesis. E o que é a poiesis, que hoje nós restringimos à noção de poesia? É algo que os gregos viam como uma techne, uma “arte”. E a conferência se conclui: “E quanto mais nós nos aproximamos do perigo, tanto mais claramente começa a se iluminar o caminho para o que salva, e tanto mais questionantes nós nos tornamos. Pois o questionar é a devoção do pensamento”. Expostas estas cinco visões, devemos assinalar que vários outros pensadores se têm dedicado à interrogação sobre, a tecnologia, e que muito frequentemente esta interrogação se confunde à ‘interrogação’ sobre a cultura de massa ou sobre a ciência. Assinalemos, contudo, os nomes e trabalhos de Adorno, Marcuse, Habermas, além de Junger e Lukács já citados. (Francisco Doria – DCC)