ser e saber

A pesquisa socrática é assim, em sentido próprio, uma «experimentação». E, tal como modernamente o investigador interroga a experiência com vista a conhecer o que ela dá a experimentar, assim Sócrates interroga, agora literalmente, a experiência dos experimentados [experto], para que deste modo possa participar do seu saber.

Todavia, no decorrer deste processo em que se ausculta a experiência para se saber a excelência, está já não só o óbvio suposto de que a excelência é «sabível», não apenas o suposto mais refinado de que só a experiência pode ensinar tal saber, quanto o suposto verdadeiramente decisivo de que tal experiência é esse saber mesmo, posto que ainda mudo e irrefletido.

A grande revelação do diálogo socrático não será, portanto, nenhum destes supostos (que, enquanto tais supostos, não se encontram abertos à discussão, nem circularmente se transfiguram em conclusões), mas aquela descoberta sutilmente distinta —e, como tal, sutilmente sugerida— de que a própria excelência é um saber. E será este, ao mesmo tempo, o permanente paradoxo e o permanente foco de aporia do diálogo, uma vez que é justamente quando a excelência vem a mostrar-se um saber que os interlocutores, que presumivelmente a sabiam na experiência, vêm igualmente mostrar que afinal a não sabem.

Todavia, para que haja paradoxo, é precisamente necessário que, ainda perante a conclusão, os supostos se mantenham (o que as palavras finais do Lísis patentemente demonstram: «Os que se vão embora dirão que nós julgávamos ser amigos uns dos outros, mas nem sequer fomos capazes de descobrir que coisa é o amigo»). E daí a persistência, agora aporética, dos três vetores da investigação socrática: o primado da questão «o que é»; a suposição de uma prévia experiência, pela qual o interrogado acerca da excelência deve ser já, de algum modo, excelente; e a exigência da verbalização.

Destacam-se desta forma duas articulações diferentes entre o saber e a questão «o que é». Por um lado, o saber está vinculado a esta questão, pois busca, pela sua própria determinação intrínseca, o que é a excelência, descobrindo que isso que ela é consiste afinal num saber; por outro, todo o saber surge outrossim determinado por um horizonte de ser, em que o que se busca saber deve ser sempre já «sido», de tal modo que a pergunta por «o que é» aponta o «é» que se é, configurando antecipadamente a centralidade futura do «conhecer-se a si mesmo».

A primeira articulação esboça o saber como um «dar razão», i. e., como um distinguir fundamentado da natureza da coisa a saber: e, neste ponto, dir-se-ia que o saber consiste para Platão, nestes primeiros diálogos, num dar razão ou, mais simplesmente, num dar conta do que é a excelência ou uma das suas partes. Mas, desde logo, atendida aquela outra articulação que configura o saber como um dar razão do que se é, para que se possa ser melhor o que se é, a preocupação platônica deixa de ser agora tão-só o dar conta do «melhor» (i. e., da excelência), para se assumir como um efetivo «tornar melhor».

Ora esta observação permite situar o saber platônico a uma outra luz: é que ele não simplesmente busca dar conta do «melhor», mas, nesse dar conta ele busca tomar melhor o que assim discorre e busca. O saber é, deste modo, o que toma melhor e que toma melhor justamente ao procurar o que é «o melhor» [Veja-se La., 194cd; Ux., 246a-247c; Prt., 349c-357c, especialmente 352cd; mas, em particular, Euthd., 277d-282e, 288d-293a. Cf. também Cra., 385e-386c, Tlit., 176ac. Acerca deste ponto, pergunta Friedländer (Plato, II, p. 42): «Are we perhaps in the midst of the process of acquiring arete while Socrates is discussing the question of the nature of courage?».]; e, portanto, o saber não partilha apenas de uma dimensão especulativa, mas possui uma dimensão irredutivelmente vivencial [Veja-se R., I, 344de, 352d; Grg., 472cd, 481c, 500bc; Ap., 38a, 39c (e cf. La., 187e–189b). Esta unidade da «teoria» e da «prática», esta realização do pensamento na vida e através da vida, deixa-se todavia surpreender paradigmaticamente também no convite de Sócrates aos seus interlocutores do Laques para que ao menos saibam ser corajosos quando se trata de discutir a coragem (194a), tema que reaparecerá, noutros contextos, no Fédon, 92c (a linguagem sem harmonia ao falar da harmonia), no Fedro, 247c (o dever de dizer a verdade principalmente quando se fala sobre a verdade), e nas Leis, X, 893b (a conveniência de invocar os deuses antes de empreender a sua discussão).].

Só que, para que possa tornar melhor, é necessário que o próprio saber seja «o melhor», i. e., é necessário que ele próprio seja a excelência ou o seu polo de articulação fundamental. E deste modo reaparecem, de um novo modo, os três planos acima relevados: o saber procura o que é a excelência; o saber torna excelente; o saber é a excelência. Em todos eles, numa explicitação e num adensamento progressivos, encontramos esta nota constante: saber a excelência é sê-la; saber é ser. O que, na fórmula lapidar do Górgias, se converte: ò τὰ δίκαια μεμαθηκῶς δίκαιος, «o que aprendeu a justiça é justo» (460b).

Esta noção — de uma intrínseca circularidade entre o ser e o saber — é aquela a que por ora devemos dar mais atenção, porque a reencontraremos sob muitas formas ao longo do pensamento platônico. Ela é ao mesmo tempo, precisamente por isso, a charneira que nos pode guiar numa iniciação à doutrina de Platão, através dos primeiros diálogos. [MesquitaPlatão:52-54]