realidade do eu

Em sua Antropologia, Kant diz achar maravilhoso que para a criança pareça nascer um mundo novo quando ela começa a falar de si mesma dizendo eu. Na realidade, isto é muito natural; é o mundo intelectual que se lhe abre, pois quem pode dizer eu a si mesmo, se eleva, justamente por isso, sobre o mundo objetivo, e passa da intuição alheia à sua própria. A filosofia tem que partir sem dúvida daquele conceito que abarca em si toda a intelectualidade, e a partir do qual esta se desdobra.

Precisamente por isto, é preciso ver que no conceito do eu há algo superior à mera expressão da individualidade, que é o ato da consciência de si mesmo em geral, com o qual tem que aparecer ao mesmo tempo, certamente, a consciência da individualidade, não contendo porém ele mesmo nada individual. Até agora só se fala do eu como ato da consciência de si mesmo em geral, e só dele se tem que deduzir toda individualidade. (…)

A pura consciência de si mesmo é um ato que está fora de todo tempo, e só ela constitui todo tempo; a consciência empírica é a que só se produz no tempo e na sucessão das representações.

A questão de se o eu é uma coisa em si ou um fenômeno, é em si mesma um contra-senso. Não é em absoluto uma coisa, nem coisa em si nem fenômeno.

O dilema com que a isto se responde: tudo tem que ser ou algo ou nada etc, funda-se na equivocidade do conceito algo. Se algo deve designar em geral algo real em oposição ao meramente imaginário, o eu tem que ser, certamente, algo real, pois é o princípio de toda realidade. Mas é igualmente claro que, precisamente porque é princípio de toda realidade, não pode ser real no mesmo sentido que aquilo a que simplesmente corresponde uma realidade derivada. A realidade que aqueles têm pela única verdadeira, a das coisas, é uma realidade meramente emprestada, e só o reflexo daquela superior, O dilema, considerado a esta luz, reduz-se, portanto, a este: tudo é ou uma coisa ou nada; o que mostra sua falsidade precisa, visto haver,. certamente, um conceito superior ao de coisa, a saber: o do fazer, da atividade.

Este conceito tem que ser muito superior ao de coisa, pois as coisas mesmas só se podem conceber como modificações de uma atitude limitada de diversas maneiras. O ser das coisas não consiste em um simples repouso ou inatividade. Pois inclusive todo preenchimento de espaço é só um grau de atividade, e cada coisa é só um certo grau de atividade, com o qual o espaço se enche.

Como tampouco corresponde ao eu qualquer predicado que corresponda às coisas, por aí se explicar o paradoxo de que do eu não se possa dizer que é. Pois não se pode dizer do eu que é, unicamente porque é o ser mesmo. O ato eterno da consciência de si mesmo, não concebido no tempo, que chamamos eu, é o que dá a todas as coisas a existência, o que, portanto, não necessita nenhum outro ser que suporte, mas que, sustentando-se e apoiando-se a si mesmo, aparece objetivamente como o devir eterno, subjetivamente como a produção infinita. (System des transzendentalen Idealismus, parte I, seção II, notas gerais, 2.) [Schelling]