REAL E REALIDADE PARA NICOLAI HARTMANN
Reproduzimos a seguir uma síntese realizada por Ferrater Mora do livro “Möglichkeit und Wirklichkeit” (Possibilidade e realidade), onde são distinguidos várias acepções do conceito de real, submetidos à crítica:
“1) O real como oposto ao aparente. Esta significação não pode ser admitida, pois o aparente é também real, já que de outra forma “não seria uma aparência real”.
2) A realidade como atualidade (Wirklichkeit) pode equiparar-se à realidade como existência (Realität). Tal equiparação é duplamente errônea, pois o real (Reale) possui em si também os outros modos de possibilidade real, impossibilidade real, etc. — além disso, podemos conceber uma “realidade essencial ou ideal”, da mesma forma que uma “realidade lógica, ou cognitiva”. A mencionada equiparação é um exemplo de confusão da esfera do ser com o modo de ser.
3) A realidade como atualidade pode equiparar-se com a efetividade “Tatsächlichkeit”. Pois bem, esta última é só “atualidade real”, e exclui por princípio as outras esferas.
4) A realidade como atualidade pode equiparar-se com a existência. Trata-se de uma confusão difícil de desentranhar, pois, como diz Hartmann “o ser real é o mais essencial na existência”. Isto representa uma confusão do modo de ser com o momento do ser. Os modos do ser são do tipo do real e do ideal. Os momentos do ser são do tipo da essência e da existência. E a essência reclama, por isso, o ser real.
5) O real pode equiparar-se com o ativo ou efetivo. Mas isto representaria converter um modo do ser em uma determinação sua.
6) O real pode ser definido como algo que designa a maior ou menor plenitude do ser (o orgânico como algo mais “real” que o inorgânico, etc). Tal conceito da realidade se aproxima ao sustentado pelos escolásticos, já que faz depender a realidade de um ser, da soma de seus predicados positivos. Confundir-se-ia em tal caso a Wirklichkeit com a realitas. Em outros termos, haveria confusão do modo com a determinabilidade. Mas enquanto a determinabilidade varia, o modo permanece, segundo Hartmann, através de todas as suas possíveis determinações. No modo, como tal, não há gradações.
7) Poder-se-ia equiparar e confundir a realidade com a actualitas, enquanto ato de ser. Mas tal significaria só a realidade de um eidos ou essentia. Não afeta ao modal, e pressupõe um esquema teleológico (o que vai da dynamis à energeia) que não somente não é aplicável a todo o real, mas que exclui o imperfeito.
8) Pode confundir-se realidade com “possibilidade de percepção de algo” e ainda com “o fato de que algo dê aos sentidos “(como ocorre com o segundo postulado do pensamento empírico em Kant). Neste caso, faz-se da realidade não uma maneira de ser, mas um modo de conhecer. Daí por que a ontologia critico-descritiva deva estabelecer claras distinções entre os distintos conceitos do real: realidade lógica, realidade cognoscitiva, realidade essencial, etc, com o fim de não aplicar a uma as categorias que pertencem à outra. A realidade, como existência, seria, assim, um dos momentos do ser; a realidade como algo distinto ou oposto à idealidade seria uma das formas do ser, e a realidade como atualidade seria um dos modos do ser”.
É o conceito de real uma das maiores dificuldades da filosofia, pois não é matéria pacífica a sua nítida acepção.
Assim se se pergunta se é real Don Quixote, ou Tartufo, ou Karamazov, pode-se responder que não e também sim. Convém, portanto, distinguir, no conceito de real, dois aspectos.
Real, como adjetivo, qualifica e afirma realidade ao que qualifica.
Neste caso, examinemos o que é Tartufo:
1) uma personagem de uma peça de Molière (ficcional);
2) pensamento de Molière, que se objetivou em sua obra; exemplo do espírito objetivo de Hegel);
3) símbolo da hipocrisia religiosa.
Assim Tartufo, enquanto em si mesmo, não é real, mas ficcional. É um ser ficcional e, como tal, persiste, não resiste, prefixação imprescindível da sistência que se objetiva. Como ser humano, existente, não é real, mas Tartufo é ainda um pensamento de Molière que se objetivou por meio de sinais que o apontam. Como objetivação de um espírito é real; como símbolo, encerra todas as condições para ter tal caracterização, pois tem notas que repetem notas da hipocrisia religiosa, portanto, como símbolo, é real (ontologicamente verdadeiro, e, por isso, real).
E se tem realidade de símbolo, de espírito objetivado, tem ainda de valor, como veremos na “axiologia”. Portanto para responder à pergunta se Tartufo é real ou não, é preciso primeiramente distinguir para depois responder.
Logo, a qualificação de real não pode ser negada facilmente sem exame.
Vemos que os seres que não existem como corpos, e como tal não oferecem uma presencialidade tempo-espacial, com resistência, consistência, persistência, subsistência, assistência (que se verifica nas relações), desistência, e, ademais, estância, distância, etc, os quais são considerados entes de razão, ou de ficção, ideais, metafísicos, etc, devem ser distinguidos em todas os suas significações para que se apontem o que oferecem e o que não oferecem de real.
Se são seres em si (com ensidade e perseitas, perseidade) a realidade é incontestável.
Se são seres em outro (in alius ou ab alius, com inaliedade, ou abaliedade) devem ser vistos dialeticamente dos seguintes campos:
a) como realização conceitual;
b) se recebem uma significação puramente de sinais;
c) como símbolo de algo real, como realidade eidética ou fáctica, isto é, como realidade de eidos, ou de acontecer independente do noûs humano (extra mentis);
d) como valor decorrente da sua realidade.
Aos primeiros seres que são fisicamente reais e se dão tensionalmente, como uma estrutura, chamemos como reais-físicos; aos que têm realidade tensional (como estrutura esquemática), mas em outros, como reais-reais; deixando as classificações de reais-ideais, aos que são reais em alguns planos, mas surgidos eideticamente, sem separabilidade física; como reais-metafísicos, os não separáveis fisicamente, mas distinguíveis cum fundamento in re; reais-ficcionais, quando oferecem as condições, como as de Tartufo; e reais-valorativos-objetivos, quando há valor com base real; valoráveis; reais-valorativos-noéticos, quando são apenas valores de valorização.
Com esta classificação, que acompanha as linhas traçadas pelos escotistas, e as nossas da decadialética, evitam-se as inúmeras discussões sobre o caráter de real que se dá à totalidade esquemática de um ser, quando se deve considerar a sua realidade, segundo a sua colocação relacional.
Assim uma alucinação, que não tem realidade objetiva, exterior, tem uma realidade noética, e portanto não pode ser classificada como real nem como irreal, sem que se procedam as distinções que, por analisarem, esclarecem, e permitem uma colocação concrecional, portanto dialéctica, sem os costumeiros defeitos de tantas inúteis discussões que perpassam pelos livros de filosofia.
Não se justifica assim colocar real ante ideal com exclusão, como se processa formalmente. Pois o ideal é real e o real pode ser ideal, dependendo apenas do campo em que é visto, do ângulo em que é tomado, do relacionamento em que se encontra.
Uma ideia não é apenas uma ideia, mas algo que tem coordenadas para a formação da sua realidade ideal. E há realidade nessas coordenadas, que o ideal, depois, significa, aponta.
Portanto, todo ser é real, segundo seus modos de ser e segundo seu relacionamento. Todo ideal é ser, portanto, como tal, é real.
Os conceitos de real e ideal devem ser tomados dialeticamente como “reais-ideais”, em toda a gama da sua escolaridade, sem exclusões, mas concretamente.
Em suma, para nós, a realidade é o nexo do acontecer cósmico: idealidade o nexo do acontecer das ideias. Este, de certo modo, inclui-se naquele, por isso também é real, mas dele se distingue..
Na realidade cósmica, as macieiras, estão aqui, ali, acolá. Na realidade ideal, elas estão englobadas no esquema eidético-noético.
Unir o nexo da realidade ao da idealidade, considerando este como um momento daquele, numa concreção, é o que faz a decadialética.
Desta forma, as críticas de Hartmann incorporam-se à nossa classificação corroborando-a. [MFS]