razão prática

A conclusão a que chega a Crítica da Razão Pura é a impossibilidade da metafísica como ciência, como conhecimento científico, que pretende a contradição de conhecer, e conhecer coisas em si mesmas. Visto que conhecer é uma atividade regida por um certo número de condições que tornam as coisas objetos ou fenômenos, existe uma contradição essencial na pretensão metafísica de conhecer coisas em si mesmas. Porém, se a metafísica é impossível como conhecimento científico, ou, como diz Kant, teorético, especulativo, não quer dizer que seja impossível em absoluto. Poderia haver talvez outras vias, outros caminhos que não fossem os caminhos do conhecimento, mas que conduzissem aos objetos da metafísica. Se existissem esses outros caminhos que, com efeito, conduzissem aos objetos da metafísica, então a Crítica da Razão Pura teria feito um grande bem à própria metafísica; porque, se bem teria demonstrado a impossibilidade para a razão teorética de chegar por meio do conhecimento a esses objetos, demonstraria também a impossibilidade dessa mesma razão teorética destruir as conclusões metafísicas que se consigam por outras vias distintas do conhecimento.

Resta-nos agora examinar o problema de se existem, com efeito, essas outras vias e quais são. Kant pensa, com efeito, que atrás do exame crítico da razão pura existem uns caminhos que conduzem aos objetos da metafísica, mas que não são os caminhos do conhecimento teorético-científico. Quais são esses caminhos?

Nossa personalidade humana não consta somente da atividade de conhecer. Mais ainda: a atividade de conhecer, o esforço para situar-nos diante das coisas para conhecê-las, é somente uma de tantas atividades que o homem exerce. O homem vive, trabalha, produz: o homem faz comércio com outros homens, edifica casas, estabelece instituições morais, políticas e religiosas; por conseguinte, o vasto campo da atividade humana ultrapassa de longe a simples atividade do conhecimento.

A consciência moral ou razão prática.

Entre outras, existe uma forma de atividade espiritual que podemos condensar no nome de “consciência moral”. A consciência moral contém dentro de si um certo número de princípios em virtude dos quais os homens regem sua vida. Ajustam sua conduta a esses princípios, e, de outra parte, têm neles uma base para formular juízos morais acerca de si mesmos e de quanto os rodeia. Essa consciência moral é um fato, um fato da vida humana, tão real, tão efetivo, tão inabalável como o fato do conhecimento.

Vimos que Kant, na sua crítica do conhecimento, parte do fato do conhecimento, parte da realidade histórica do conhecimento, Pois igualmente existe no âmbito da vida humana o fato da consciência moral. Existe essa consciência moral, que contém princípios tão evidentes, tão claros como possam ser os princípios do conhecimento, os princípios lógicos da razão. Existem juízos morais que são também juízos, como podem sê-lo os juízos lógicos da razão raciocinante.

Pois bem: nesse conjunto de princípios que constituem a consciência moral encontra Kant a base que pode conduzir o homem à apreensão dos objetos metafísicos. A esse conjunto de princípios de consciência moralKant um nome. Ressuscita, para denominá-lo, os termos de que se valeu para isso mesmo Aristóteles. Aristóteles chama a consciência moral e seus princípiosrazão prática” (noûs praktikos). Kant ressuscita essa denominação, e ao ressuscitá-la e aplicar à consciência moral o nome de razão prática, fá-lo precisamente para mostrar, para fazer patente e manifesto que na consciência moral atua algo que, sem ser a razão especulativa, se assemelha à razão, são também princípios racionais, princípios evidentes, dos quais podemos julgar por meio da apreensão interna de sua evidência. Portanto, pode chamá-los legitimamente razão. Porém não é a razão enquanto se aplica ao conhecimento; não é a razão encaminhada a determinar a essência das coisas, aquilo que as coisas são, mas é a razão aplicada à ação, à prática, aplicada à moral. Pois bem. Uma análise desses princípios da consciência moral conduz Kant aos qualificativos morais; por exemplo, bom, mau, moral, imoral, meritório, pecaminoso etc. Estes qualificativos morais, estes predicados morais que nós muitas vezes costumamos estender às coisas, não convém todavia às coisas. Dizemos que esta coisa ou aquela coisa é boa ou má; mas, em rigor, as coisas não são boas nem más, porque nas coisas não há mérito nem demérito. Por conseguinte, os qualificativos morais não podem predicar-se das coisas, que são indiferentes ao bem e ao mal; só podem predicar-se do homem, da pessoa humana. Somente o homem, a pessoa humana é verdadeiramente digno de ser chamado bom ou mau. As demais coisas que não são o homem, como os animais, os objetos, são aquilo que são, porém não são bons nem maus.

Por que é o homem o único ser do qual pode, em rigor, predicar-se a bondade e a maldade moral? Pois é porque o homem realiza atos e na realização desses atos o homem faz algo, estatui uma ação, e nessa ação podemos distinguir dois elementos: aquilo que o homem faz efetivamente e aquilo que quer fazer. Feita esta distinção entre aquilo que faz e aquilo que quer fazer, notamos imediatamente que os predicados bom, mau, os predicados morais, não correspondem tampouco àquilo que o homem faz efetivamente, mas corresponde estritamente àquilo que quer fazer. Se uma pessoa comete um homicídio involuntário, este ato evidentemente é uma grande desgraça, porém não pode qualificar-se de bom nem de mau aquele que o cometeu. Não, pois, ao conteúdo dos atos, ao conteúdo efetivo; não, pois, à matéria do ato que convém os qualificativos morais de bom ou mau, mas à vontade mesma do homem .

Esta análise conduz à conclusão de que a única coisa que verdadeiramente pode ser boa ou má é a vontade humana. Uma vontade boa ou uma vontade má. [Morente]