razão e revelação

Agora se apresenta, porém, com singular agudeza o problema final de toda a filosofia. Como alcançar esse conhecimento da verdade primeira ou ser primeiro? Que meios temos para chegar a essa sabedoria suprema ou esse conhecimento de Deus?

Resposta de Tomás de Aquino: temos antes de mais nada a razão. Com a razão podemos, sem dúvida, avançar muito na sabedoria metafísica acerca de Deus. Podemos, por exemplo, conhecer que Deus existe, que Deus é um, simples, infinito, e outras verdades semelhantes. Pois bem: nem tudo o que sabemos acerca de Deus o sabemos pela via da razão natural. Também temos sobre Deus conhecimentos “que excedem toda faculdade de razão humana”. São os conhecimentos que Deus mesmo nos deu de si próprio na sua revelação. A situação de fato é, pois, a seguinte: “conhecemos algo” de Deus por razão natural; “não conhecemos tudo” de Deus por razão natural; “conhecemos algo” de Deus por revelação.

Que a razão natural seja insuficiente para nos proporcionar um conhecimento completo e perfeito de Deus, é coisa que resulta clara e patente se consideramos o mecanismo dos conhecimentos humanos. Com efeito, o intelecto humano está unido à matéria; para conhecer necessita tomar como ponto de partida a realidade sensível, e, sobre os dados dos sentidos realizar a intelecção da forma essencial. Sem dúvida nosso intelecto, baseando-se nos dados da experiência sensível, pode inferir que Deus existe; mas não pode inferir o que Deus é. Sem dúvida, uma vez estabelecida a existência de Deus, nossa razão pode formar algum conceito dele; mas necessariamente há de ser um conceito negativo e “analógico”, obtido estendendo à essência de Deus negativa e analogicamente os conceitos das essências das coisas sensíveis. De maneira alguma está o intelecto humano capacitado para contemplar diretamente a essência mesma de Deus, já que Deus, substância totalmente espiritual, não oferece aos nossos sentidos base alguma sensível da qual o intelecto possa extrair a essência inteligível. O que ulteriormente sabemos de Deus, sabemo-lo, pois, por outra via que não é a razão natural. Sabemo-lo por revelação, sabemo-lo pela . A conveniência de que as verdades da fé venham complementar as aquisições da razão natural não se baseia, todavia, somente na maior riqueza de conhecimentos que este divino auxílio nos outorga. Há outros dois fundamentos, segundo Tomás de Aquino, que abonam também a conveniência da revelação e, portanto, da fé. O primeiro se encontra no fim supremo da salvação do homem. Para salvar-se necessita o homem conhecer seu fim e condicionar a ele seu comportamento. Era, pois, conveniente que Deus revelasse ao homem certas verdades superiores à razão para que o homem, conhecendo-as, pudesse organizar e orientar convenientemente sua vida para a eterna salvação. O segundo fundamento que justifica a revelação é: que o exercício mesmo da fé reage sobre a razão aperfeiçoando-a e dando o remate mais adequado à atividade humana. Convém ao homem saber que há, acima da sua razão limitada, essências que a razão sozinha não pode conhecer. Convém ao latente orgulho da alma racional o perpétuo exercício de humildade a que o obriga a fé. Convém que o homem não caia na tentação de medir a grandeza de Deus pelo nível raso de sua pobre razão.

Assim, pois, a fé é o complemento, o aperfeiçoamento da razão. Em rigor, a razão e a fé não deveriam se sobrepor nunca. Porque de um e mesmo objeto não podemos ter ao mesmo tempo conhecimento de fé e conhecimento de razão. Se sabemos algo por fé, não p sabemos por razão. Se sabemos algo por razão, não o sabemos por fé. A razão demonstrativa e a ciência certa de algo exclui a fé. E, reciprocamente, quando de algo temos crença por fé é que não podemos prová-lo nem demonstrá-lo. “É impossível — diz Tomás de Aquino — que de uma e mesma coisa haja fé e ciência.” Justamente porque a razão e a fé são complementares é que se excluem em um e mesmo objeto. Mas o rigor desse princípio recebe na aplicação prática paliativos e emendas oportunas. De fato, muitas verdades que em si mesmas são de razão encontram-se em nós como de fé e são por nós cridas mais do que conhecidas demonstrativamente. Assim acontece quando damos crédito cego aos cientistas nas disciplinas que ignoramos. De outra parte, existem demonstrações racionais que são difíceis de estabelecer e em cujo transcurso pode de fato fraquejar a inteligência, dando entrada sub-repticiamente ao erro. Que isto aconteça com efeito muitas vezes, demonstram-no as disputas e as discussões entre os sábios. É, pois, impossível e seria demais inconveniente levar ao extremo rigor o princípio da exclusão recíproca da razão e da fé. Sem dúvida a razão e a fé se completam, e, portanto, não devem se sobrepor. Mas em muitos casos — por exemplo, em todos os casos de ignorância ou de incapacidade pessoal — a fé substitui com vantagem à razão; e a Providência age sabiamente propondo à fé das multidões humanas certas verdades que em si mesmas, e talvez para algumas inteligências mais sutis, poderiam ser acessíveis à demonstração racional. [Morente]