Os filósofos que sucedem a Kant se diferenciam de Kant de uma maneira radical e se assemelham a ele de uma maneira perfeita. Diferenciam-se radicalmente dele no seu ponto de partida. Kant tomara como ponto de partida da filosofia a meditação sobre a ciência físico–matemática aí existente como um fato, e também a meditação sobre a consciência moral, que também é outro fato, e, como diz Kant, factum, fato da razão prática. Mas os filósofos que vêm depois de Kant abandonam esse ponto de partida de Kant; já não tomam como ponto de partida o conhecimento e a moral, mas tomam como ponto de partida o “absoluto”. Esse algo absoluto e incondicionado é o que dá sentido e progressividade ao conhecimento e o que fundamenta a validez dos juízos morais. Mas ao mesmo tempo digo que se assemelham a Kant, porque de Kant tomaram esse novo ponto de partida. Aquilo que para Kant era uma transformação da metafísica antiga numa metafísica do ideal, é para eles agora, propriamente, a primeira pedra sobre a qual tem que se edificar o sistema. E, se assim mo permitisse o esforço arriscadíssimo, aventuradíssimo, de reduzir a um esquema claro aquilo que há de comum nos três grandes filósofos que sucedem a Kant, — Fichte, Schelling, Hegel — eu me atreveria ousadamente a esboçar o seguinte.
Primeiro, esses filósofos, os três, partem da existência do absoluto. A pergunta metafísica fundamental que nós desde o começo deste curso levantamos (que é o que existe?) respondem: existe o Absoluto, o incondicionado. Existe algo cuja existência não está sujeita a condição alguma. Este é para eles o ponto de partida. Algum perito em filosofia pode descobrir aqui a influência que sobre esses pensadores exerce Espinosa, que foi descoberto na Alemanha, precisamente neste momento, na época da morte de Kant. Foi, pois, para eles o absoluto o ponto de partida. Segundo, também é comum aos três pensadores, que vêm depois de Kant, a ideia de que esse absoluto, esse ser absoluto que tomaram como ponto de partida, é de índole espiritual. Quer dizer, que esses três pensadores consideram e concebem esse absoluto sob uma ou outra espécie, mas sempre sob uma espécie espiritual; nenhum deles o concebe sob uma espécie material, nenhum deles o concebe materialisticamente.
Em terceiro lugar, os três consideram também que esse absoluto, que é de caráter e de consistência espiritual, manifeste-se, fenomenaliza-se, expande-se no tempo e no espaço, explicita-se pouco a pouco numa série de trâmites sistematicamente enlaçados; de modo que esse absoluto que, tomado na sua totalidade, é eterno, fora do tempo, fora do espaço, constitui a essência mesma do ser, alargase, por assim dizer, no tempo e no espaço. Sua manifestação produz de si, do seu seio, formas que manifestam a sua própria essência; e todas essas formas que manifestam sua própria essência fundamental constituem aquilo que nós chamamos o mundo, a história, os produtos da humanidade, o homem mesmo.
Por último, em quarto lugar, também é comum a esses filósofos e sucessores de Kant o método filosófico que vão seguir e que vai consistir para os três numa primeira operação filosófica que eles chamam intuição intelectual, a qual está encaminhada a apreender diretamente a essência desse absoluto sem tempo, a essência dessa incondicionalidade; e depois dessa operação de intuição intelectual, que capta e apreende aquilo que o absoluto é, vem uma operação discursiva, sistemática e dedutiva, que consiste em aplicar aos olhos do leitor os diferentes trâmites mediante os quais esse absoluto sem tempo e eterno se manifesta sucessivamente em formas várias e diversas no mundo, na natureza, na história.
Por conseguinte, todos estes filósofos serão essencialmente sistemáticos e construtivos. A operação primeira da intuição intelectual lhes dá, por assim dizer, o germe radical do sistema. A operação seguinte, da construção ou da dedução transcendental, dá-lhes a série dos trâmites e a conexão de formas que se manifestam no espaço e no tempo em que essa essência absoluta e incondicionada se explicita e se faz patente.
Todos esses caracteres, que, digo, são comuns aos três filósofos que sucedem a Kant, mostram-se influenciados ou derivados por essa transformação que Kant fez no problema da metafísica. Kant deu ao problema da metafísica a transformação seguinte: a metafísica procurava aquilo que é e existe “em si”. Pois bem, para o pensamento científico nada é ou existe em si, porque tudo é objeto de conhecimento, objeto pensado para um sujeito pensante. Porém isto que procurava a metafísica, e que não é “em si” nem existe “em si”, é, todavia, uma ideia reguladora para o conhecimento discursivo do homem: as matemáticas, a física, a química, a história natural. E essa ideia reguladora representa o contrário dos objetos do conhecimento concreto. Se os objetos do conhecimento concreto são relativos, correlativos ao sujeito, essa outra ideia reguladora representa o absoluto, o completo, o total, o que não tem condição alguma, o que não necessita condição. Daqui partem então os sucessores de Kant. E esse absoluto é, para eles, o ponto de partida, em vez de ser, como em Kant, o ponto de chegada. [Morente]