É nesse ponto, parece-me, que a preocupação do humanista para com o homem e sua estatura é cortada pelo cientista. É como se as ciências tivessem feito aquilo que as humanidades jamais poderiam ter realizado, a saber, provar de maneira demonstrável a validade de seu objeto. A situação, tal como se apresenta hoje, assemelha-se curiosamente a uma confirmação minuciosa de uma observação de Franz Kafka, escrita bem ao início desse processo: “O homem – diz ele – encontrou o ponto de Arquimedes, porém utilizou-o contra si mesmo; era-lhe permitido achá-lo, parece, somente sob esta condição” [Arquimedes teria dito: “dê-me um ponto fixo que eu moverei a Terra”]. A conquista do espaço, a procura de um ponto fora da terra do qual fosse possível movê-la, desequilibrar – digamos assim – o planeta inteiro, de modo algum é consequência acidental da ciência da época moderna. Esta, desde seus primórdios, não foi uma ciência “natural”, e sim uma ciência universal; não era uma física, e sim uma astrofísica que contemplava a terra do alto de um ponto no universo. Em termos desse processo, a tentativa de conquistar o espaço significa que o homem espera ser capaz de viajar até o ponto arquimediano por ele antecipado pela pura capacidade de abstração e imaginação. Contudo, ao fazê-lo, ele perderá necessariamente sua vantagem. Tudo que ele pode achar é o ponto arquimediano com referência à terra, porém, uma vez aí chegado e tendo adquirido esse poder absoluto sobre seu habitat terrestre, ele precisará de um novo ponto arquimediano, e assim ad infinitum. Em outras palavras, o homem apenas pode se perder na imensidão do universo, pois o único verdadeiro ponto arquimediano seria o vazio absoluto, além do universo. [ArendtPF:C8]
Em nosso contexto, o que importa é que tanto o desespero quanto o triunfo são inerentes ao mesmo evento. Se desejarmos colocar isso em uma perspectiva histórica, é como se a descoberta de Galileu comprovasse com um fato demonstrável que tanto o pior temor quanto a mais presunçosa esperança da especulação humana – o antigo temor de que os nossos sentidos, nossos órgãos para a recepção da realidade, podem nos trair, e o desejo arquimediano de um ponto fora da Terra a partir do qual o homem pudesse erguer o mundo – só pudessem se mostrar verdadeiros ao mesmo tempo, como se o desejo só pudesse ser satisfeito contanto que perdêssemos a realidade, e o temor só se consumasse se compensado pela aquisição de poderes supramundanos. Pois, o que quer que façamos hoje em física – seja liberando processos energéticos que ordinariamente só ocorrem no Sol, seja tentando desencadear em um tubo de ensaio os processos de evolução cósmica, ou, com o auxílio de telescópios, penetrando o espaço cósmico até um limite de dois e mesmo de seis bilhões de anos-luz, ou construindo máquinas para a produção e controle de energias desconhecidas no lar da natureza terrena, ou, em aceleradores atômicos, atingindo velocidades que se aproximam da velocidade da luz, ou produzindo elementos que não se encontram na natureza, ou dispersando partículas radioativas, criadas por nós na Terra mediante o emprego da radiação cósmica –, sempre manejamos a natureza a partir de um ponto no universo, fora da Terra. Sem efetivamente nos posicionarmos onde Arquimedes desejava se posicionar (dos moi pou sto), presos ainda à Terra pela condição humana, descobrimos um meio de atuar sobre a Terra e dentro da natureza terrena como se pudéssemos dispor dela a partir de fora, do ponto arquimediano. E mesmo com o risco de ameaçar o processo vital natural, expomos a Terra a forças universais e cósmicas alheias ao lar da natureza. [ArendtCH:C36]