A toda palavra pertence que ela seja ouvida ou ao menos que possa sê-lo. Escutamos palavras e lhes prestamos atenção ou não, mas não o fazemos na medida em que dispomos a priori da capacidade de compreendê-las. Esta capacidade de ouvir a palavra precede a toda escuta particular e a torna possível. Na palavra do mundo, a capacidade de ouvir esta palavra reside no fato de que somos abertos ao mundo. Não há escuta possível senão no que está fora de nós e que se dá a ouvir a nós nesse “lá fora” que é o mundo. Assim como falar quer dizer fazer ver num mundo, assim também ouvir significa perceber, receber o que, por se mostrar assim a nós no mundo, pode, com efeito, ser percebido e recebido por nós. Pouco importa que se trate de um fenômeno visual, sonoro ou ideal. Falar e ouvir têm, assim, um mesmo fundamento, esse fundamento fenomenológico que é o aparecimento num mundo. Um mesmo Distanciamento é constitutivo do Ouvir primitivo de que falar e escutar são modos. Do fato de o Ouvir – a possibilidade de ouvir em geral, [314] de falar ou de escutar – residir neste Distanciamento do mundo, resulta uma incerteza fundamental em relação a tudo o que é dito e ouvido assim. E isso porque, separado por este Distanciamento de tudo o que é dito e ouvido, dito e ouvido como algo exterior, diferente dele, aquele que escuta se vê reduzido, a respeito de tudo aquilo, a conjecturas e interpretações.
É o que ressalta com evidência da situação todavia privilegiada em que se supõe que é o mesmo que fala e que escuta, que escuta sua própria palavra. Esta situação é a da consciência moral. Na consciência moral, com efeito, supõe-se que o homem escuta uma voz que lhe fala dele mesmo, mas que vem também dele, do fundo dele mesmo, como se fosse ele mesmo que falasse a si mesmo mediante a voz da consciência moral, que se exortava à ação moral. Esse Fundo do homem, esse Fundo dele mesmo donde lhe fala a voz da consciência moral, as diversas filosofias o interpretam diferentemente. Mas o que importa é que a palavra da consciência moral seja interpretada à luz do conceito tradicional de palavra, isto é, como uma palavra do mundo. Esta palavra fala fazendo ouvir o que ela diz num “lá fora” onde ressoa. É porque o que ela diz ressoa nesse lá fora que ele se torna acessível, audível, e se pode prestar atenção a ele ou se fechar para ele. Em todos os casos, o que é dito é um conteúdo exterior, sensível ou inteligível. É na medida em que ele se mostra a título de conteúdo exterior que o que é dito pode ser ouvido. Falar e ouvir supõem o mundo e sua abertura. Aquele que fala e que ouve deve estar aberto a este mundo.
(Michel Henry, MHSV)