origens da filosofia

A primeira questão, a das origens, permanece sem solução precisa. Ao lado dos que, com Aristóteles, fazem de Tales, no século VI a.C, o primeiro filósofo, havia já, na Grécia, historiadores que faziam remontar além do helenismo, até aos bárbaros, as origens da filosofia. Diógenes Laércio, no prefácio de sua Vidas dos Filósofos, fala-nos da antiguidade fabulosa da filosofia entre os persas e entre os egípcios. Desde a Antiguidade, portanto, as duas teses se defrontam: a filosofia é uma invenção dos gregos ou uma herança que receberam dos “bárbaros”?

Parece que os orientalistas, à medida que nos desvelam as civilizações pré-helênicas, tais como a mesopotâmica e a egípcia, com as quais as cidades da Jônia, berço da filosofia grega, tiveram contato, dão razão à segunda das teses. É impossível não se perceber a afinidade de pensamento entre a conhecida tese do primeiro filósofo grego, Tales, segundo a qual todas as coisas são feitas da água, e o começo do Poema da Criação, escrito muitos séculos antes na Mesopotâmia: “Quando, no alto, o céu era ainda inominado, e embaixo, tampouco a terra tinha nome, do Apsou primigenio, pai, e da tumultuosa Tiamat, a mãe de todos, todas as águas se confundiam numa.” [DELAPORTE, La Mésopotamie, “Bibliothèque de synthèse historique”, 1923, p. 152.] Esses textos são suficientes, ao menos para nos convencer que Tales não foi o inventor de uma cosmogonia original: as imagens cosmogônicas, que, talvez, determinou, existiam desde muitos séculos. Pressentimos que a filosofia dos primeiros fisiólogos da Jônia podia ser uma forma nova de um tema extremamente antigo.

As pesquisas mais recentes sobre a história das matemáticas conduzem à conclusão análoga. Desde 1910, G. Milhaud escrevia: “Os materiais acumulados nas matemáticas pelos orientais e os egípcios eram, decididamente, mais importantes e mais ricos como não se suspeitava, ainda, há uma dezena de anos.” [Nouvelles études sur l’histoire de la pensée scientifique, Paris, 1910, p. 127.]

Finalmente, os trabalhos de antropólogos sobre as sociedades inferiores introduzem novos dados que vêm complicar, ainda mais, o problema da origem da filosofia. Encontram-se, com efeito, na filosofia grega, traços intelectuais que não têm analogia senão em uma mentalidade primitiva. As noções empregadas pelos primeiros filósofos, como as de destino, justiça, alma, deus, não foram criadas ou elaboradas por eles; são ideias populares, representações coletivas que encontraram. São, parece, noções que lhes serviam de esquemas ou de categorias para conceber a natureza exterior. A ideia que os fisiólogos jônios faziam da ordem da natureza; como um agrupamento regular de seres ou de forças às quais o destino soberano impõe limites, deve-se à transferência da ordem social no mundo exterior. A filosofia não é, talvez, em seus começos, senão uma vasta metáfora social. Fatos tão estranhos, como o simbolismo numérico dos pitagóricos, que admitiam que “tudo é número”, explicar-se-iam por essa forma de pensamento, que um filósofo alemão denominava, recentemente, de “pensamento morfológico-estrutural” dos primitivos, o qual opunha ao pensamento funcional baseado sobre o princípio de causalidade; como a tribo norte-americana dos zunis atribui à sua raça uma divisão em sete partes, a divisão, em sete, da aldeia, das regiões do mun-do, dos elementos, do tempo, assim os pitagóricos ou mesmo Platão, no Timeu, inventam, continuamente, correspondências numéricas da mesma ordem. [CASSIRER, Die Begriffsform im mythischen Denken, Lipsia, 1922.] A semelhança, afirmada no Timeu, entre os intervalos dos planetas e a escala musical parece-nos inteiramente arbitrária, e a lógica escapa-nos, tanto quanto a da participação, estudada por L. Lévy-Bruhl em seus trabalhos sobre a mentalidade primitiva.

Assim sendo, os primeiros sistemas filosóficos dos gregos não seriam, de modo algum, primitivos; não seriam senão a forma elaborada de um pensamento bem mais antigo. Indubitavelmente, é nessa mentalidade que se deveria buscar a origem verdadeira do pensamento filosófico ou, pelo menos, de um de seus aspectos. [Ver, sobre o assunto, o impressionante livro de F. M. CORNFORD. From religion to philosophy, Londres, 1912. (Cf. É. BRÉHIER, “Une nouvelle théorie sur les origines de la philosophie grecque”, Études de Philosophie antique, Paris, 1955, pp. 33-43.)] A. Comte não se enganara ao considerar como raiz da representação filosófica do universo aquilo que chamava de fetichismo. Agora que, mediante o folclore e os estudos sobre os povos não civilizados, se tem um conhecimento mais preciso e positivo do estado de espírito dos primitivos, pressente-se melhor tudo o que subsiste na metafísica evoluída dos gregos.

Destarte, os primeiros “filósofos” da Grécia nada tiveram, verdadeiramente, que inventar; trabalharam sobre representações complexas e ricas, mas também confusas, as quais dificilmente podemos imaginar. Mais do que inventar, necessitavam desenovelar e selecionar, ou melhor, a invenção consistia no próprio discernimento. Melhor se poderia compreendê-los, sem dúvida, se se soubesse o que rejeitaram, em vez de saber o que conservaram. De outra parte, vê-se reaparecer, as vezes, representações rejeitadas, e o pensamento primitivo subjacente desenvolve contínuo esforço, que, em certas ocasiões, tem êxito, para ultrapassar os diques que o encerram.

Se, apesar dessas advertências, preferimos começar nossa história a partir de Tales, não é porque desconheçamos a longa pré-história em que se elaborou o pensamento filosófico; é somente pela razão prática de que os documentos epigráficos das civilizações mesopotámicas são pouco numerosos e de difícil acesso, e também porque os documentos sobre os povos selvagens não nos podem fornecer indicações sobre o que tenha sido a Grécia primitiva. [Bréhier]