Ao terminar esta excursão que empreendemos pelo campo da Ontologia, chegamos ao momento em que, após ter estudado a estrutura ôntica dos objetos reais e irreais (v. coisas reais e coisas ideias) e a dos valores (v. ontologia dos valores), nos encontrávamos defronte a um quarto e último problema ontológico: o da raiz mesma em que todos esses objetos revelam sua existência, sua entidade; encontrávamo-nos com a vida mesma, na qual “há” essas coisas reais, esses objetos ideais e esses valores.
Já podemos prever que os problemas ontológicos que há de nos apresentar a vida como objeto metafísico têm que ser problemas de aspectos muito distintos daqueles que nos apresentam essas esferas da ontologia que anteriormente percorremos.
Em nossa vida “há” coisas reais, objetos ideais e valores. Cada uma dessas esferas ontológicas tem sua própria estrutura; e podemos nos perguntar: que significa isso que eu exprimo com a palavra “há”? Que significa esse haver coisas reais, objetos ideais, valores? Esse “haver” não significa outra coisa que a totalidade da existência. Haver algo é existir algo de uma ou de outra forma; e a totalidade da existência, a existência inteira é aquilo que há. Existência de que? perguntar-se-á. Pois a existência das coisas reais, dos objetos ideais, dos valores e de mim mesmo. Todo este conjunto do que há é, gramaticalmente dito, o complemento determinativo da existência; a existência é existência de tudo isso.
A existência, pois, na sua totalidade, abrange o ôntico e o ontológico, porque me abrange a mim também. Abrange o eu, capaz de pensar as coisas, e as coisas, que o eu pode pensar. Essa existência inteira, total, podemos denominá-la muito bem “vida”, minha vida; porque eu não posso, de modo algum, sonhar sequer que exista algo que não existe de um modo ou de outro em minha vida: diretamente, com uma existência especial, que é a existência de presença, ou indiretamente, por meio de uma existência de referência. Esta existência de minha vida é aquilo que o filósofo alemão contemporâneo Heidegger chama “a existência do ente humano”. Ela mesma é ente, ou seja, que ela mesma — a existência — é entitativa. O ente humano, como existente, abrange, por conseguinte, não somente, estritamente falando, a subjetividade, mas também a objetividade. Desta maneira recebe um sentido pleno a fórmula que constantemente emprega o filósofo que citei para definir aquilo que essencialmente constitui esse ente da existência humana e é “O estar eu com as coisas no mundo”.
A contraposição, pois, das coisas e o eu, pertence exatamente às velhas posições do problema metafísico no realismo e no idealismo. O estar eu com as coisas no mundo, o mundo e eu juntamente formando a existência real da vida humana, é o que constitui esse mais profundo elemento que serve de base e raiz, tanto às soluções realista como idealista.
A vida: ente independente.
Assim, pois, este quarto objeto metafísico que podemos, indistintamente, chamar a vida ou a existência, vai constituir o término de nossas reflexões. Mas logo cabe a adversão que este objeto — a vida — ocupa, na ontologia, um plano mais profundo que qualquer das três esferas objetivas que anteriormente desenhamos. Ocupa tal plano pela simples reflexão: que qualquer dessas três esferas ontológicas — as coisas reais, os objetos ideais, os valores — “estão em” a vida; todavia ela, a vida, não está em nenhuma parte. Por conseguinte, ontologicamente, há uma diferença essencial entre o ente das coisas reais, o ente dos objetos ideais, o ente dos valores e o ente vida, sendo que os três primeiros são entes “em” a vida, ao passo que a vida não é “em”, não está “em”. É o que poderíamos expressar, de um modo muito mais simples e claro, dizendo que os três primeiros entes não são independentes, quando a vida é um ente
independente. E o que significa ser independente? Significa não depender de nenhuma outra coisa, o que em filosofia sempre se denominou absoluto, autêntico. Dizemos então que o único ente absoluto e autêntico é a vida, a que Heidegger chama existência.
Posso dar agora, num relance, a resposta que a filosofia contemporânea insinua para o problema metafísico que apresentamos ao iniciar estas lições: quem existe? que é que existe? Agora a resposta é simples: existe a vida; por isso que a vida é a existência, a única existência absoluta e autêntica, uma vez que os outros três tipos de entes, que chamamos coisas reais, objetos ideais e valores, estão “em” a vida, dela dependendo de certo modo ou, de certo modo, subordinados a ela.
Estrutura ôntica da vida
Vamos tentar esboçar os problemas principais de uma ontologia fundamental da vida.
A grande dificuldade com que tropeçamos, e à qual me referia faz um momento, para descrever adequadamente estas sinuosidades nas estruturas íntimas da vida, provém do seguinte: que, como era historicamente necessário, a filosofia parte da intuição de um ente concreto e particular, de um desses entes que estão “em” e que, por conseguinte, não são o ente absoluto e autêntico. A filosofia parte com Parmênides da intuição de um ente particular e derivado; forja então seus conceitos lógicos, dobrando-se à estrutura desse ente particular, e então esses conceitos do ente particular são conceitos de entes inertes, definitivos; de entes que “são já” tudo aquilo que têm que ser; de entes em cuja entranha não existe o tempo; de entes absolutamente estáticos, quietos, daquilo que chamaríamos “entes-coisas”.
Duas características tem todo ente–coisa: o “ser já”, ou seja, o ser sem tempo, e a identidade. Assim, todos os conceitos lógicos que desde Parmênides baralham a ontologia para reproduzir ou tentar reproduzir a estrutura da realidade, são conceitos lógicos que contêm no seu seio essas duas características: o “já” definitivo, que exclui toda possibilidade de futuro, e a identidade, que exclui toda possibilidade de variação.
Pois bem; se nós, com esses conceitos que desde Parmênides até hoje dominam na lógica, queremos apresar o ente primário da existência humana — a vida — concluímos o que esses conceitos não servem, porque a vida é, não identidade, mas constante variabilidade, e porque a vida é justamente o contrário do “já”; não é descritível por meio do advérbio “já”, antes é o nome daquilo que ainda não é. Por conseguinte, a estrutura ontológica da vida nos mostra um tipo antológico para o qual não temos conceito. E o que primeiro tem a fazer, ou pelo menos o que, paralelamente à metafísica da existência humana, tem que fazer uma lógica existencial, é forjar esses novos conceitos. Existem conceitos ocasionais tais que o que designam não é nada idêntico nem sempre igual a si mesmo, nada inerte e definitivo. antes designam o que quer que “haja” na ocasião e no momento. Dizemos: “algo”, a palavra “algo”, o pronome indefinido “algo”; dizemos também “agora”, o advérbio “agora”. Pois bem; o conteúdo real desses conceitos pode ser variadíssimo. O “agora” de 1937 é diferente do “agora” de 1837, não obstante, com um mesmo conceito designamos todas essas variações. Eis aqui, pois, um fundo de conceitos ocasionais cujo estudo na lógica poderia ser de grande fecundidade para estas necessidades novas na metafísica existencial.
Esses conceitos ocasionais não somente não fixam o ser como uma borboleta na coleção do entomólogo; não fixam o inerte num pensar sob eles cada vez um ser distinto, um ser que muda. Por ser “já” e num ser idêntico, antes, pelo contrário, nos convidam a isso, a descrição que vamos fazer da realidade ontológica vital vai ser difícil e alguma vez deverá ter aspectos preferentemente literários ou sugestivos; porque a verdade é que carecemos dos conceitos puros e apropriados para isto. Assim vamos ver que esta descrição desse ente particular que é a vida se caracteriza essencialmente por estar semeada de alto abaixo de aparentes contradições. [Morente]
VIDE caracteres da vida; vida e tempo; angústia e nada; problema da morte; problema de Deus.