38. No mundo da objetividade, nunca saberei o que «eu» sou. Sei do «me» e do «mim», porque um e outro são objetivações do «eu» que se procura, e o «eu» se oculta na minha personalidade, ou na personagem, feita de «me» e de «mim». Escrevi «minha» sem propósito: o propósito veio depois: mais tentados estamos a dizer que tal ou tal ser humano tem personalidade, bem representa o papel que assumiu, do que o dizer que ele é uma personalidade, não personagem que consciente ou inconscientemente desempenha qualquer papel que não seja o do próprio drama da sua vida. E se de alguém se diz que é uma personalidade (importante, relevante, ilustre, etc.), que, em geral, é quem mais vezes propõe o «eu» a um «faço», «posso» e «mando», não se vê como um «eu» inqualificável ou impredicável, porque inobjetivável, poderá «fazer», «poder» e «mandar». Mantenho, pois, que personalidade seja a que se tem, não a que se é. O que eu tenho, não sou; e o que eu sou, não tenho. O «eu» está do lado do ser; o «mim» e o «me» do lado do ter. Ninguém é o que tem, embora o muito ter possa conferir a aparência de ser. «Eu» estou separado do «mim» e do «me»; «eu» sou à parte do «me» e do «mim». O «eu» nada diz nem age, mas nem por isso se prescinde dele: em sua presença, ou porque presente ao «mim mesmo», este age, fala e pensa. Personalidade maior não nasce de uma dilatação do «eu», mas de uma sobrecarga do «si mesmo». Pensará, o leitor, que me abeirei da insanidade mental se afirmar que o «mim mesmo» nasce da negação do «eu», como, para os neoplatônicos, a primeira hipóstase do Um nasce do afirmar-se dela o que do Um se nega? Mas o racionalístico misticismo neoplatônico facilmente se transpõe. Não nasceria a matéria do afirmar-se dela o que do espírito se nega? Não nasceria o corpo do afirmar-se dele o que se nega da alma? Mas, por aqui, só vertamos a «processão» do «mim mesmo»; a «reversão» ou «conversão», que faz que ele subsista e não se dissolva em nada, exige a presença do «eu» e que para essa presença ele se volte e o contemple. Isto é alegoria; alegoria neoplatônica. Outro poderá escolher outra, contanto que não desminta o que parece evidente: «eu» estou separado de «mim», ou do «mim» sou separável. O «eu» carrega o «mim» por quase todo o caminho da vida, mas, no fim, tenho de alijar a carga. De contrário, não passarei pela mais estreita de todas as portas, aquela que abre acesso a mundo que já não é mundo. [EudoroMito:61-63]
«eu»
[…] que pode significar o «só eu posso sair sem mim» e o «eu a transponho, deixando-me para trás»? Tê-lo-ia escrito sem que nada quisesse dizer, ou para dizer «difícil» o que é fácil de dizer? Nem uma nem outra coisa: quis dizer algo que me parece muito importante, e da única maneira de evitar a longa paráfrase que, efetivamente, não posso evitar. Gramaticalmente, o mim e o me são dois casos da flexão pronominal do eu. E é só. A partir daqui, a gramática não nos preocupará mais. A questão é a de saber se, por exemplo, nas duas proposições seguintes: «eu vou falar de mim» e «eu me conheço», poderíamos pensar (não, dizer ou escrever!): «eu vou falar de eu» e «eu conheço eu». Está dito: agora não é a gramática que está em questão. Em questão está outra coisa: se é possível o «eu falar do que sou, enquanto eu» e o «eu conhecer o que sou, enquanto eu». Por outras palavras, se (fora do domínio gramatical) «mim» e «me» não ocupam lugar usurpado, se «mim» e «me» não são modos de referência ao «eu», por identidade, ou se, pelo contrário, «eu» não está para um lado, e o «mim» e «me», para outro, para dois lados distantes, a ponto de jamais coincidirem. Também não se trata de psicologia. Ao que acabei de afirmar poder-me-iam opor a introspecção. Talvez haja quem por querer creia que meu olhar revertido para dentro de mim alcance o que eu sou, que o olho se veja a si mesmo, ou que em mim haja o que quer que lhe reflita a imagem. Não por não querer não creio que tão fundo chegue o olhar introspectivo. Também não se trata de psicanálise: não me ponho em busca do inconsciente coletivo que subjaz à consciência individual. Não o esqueçamos: o que está em jogo é o «eu» e, sobretudo, o em que ele diverge do «mim» e do «me», o em que eles não se identificam nem se podem identificar. Mais prometedora nos parece a gnosiologia. Especialmente a do criticismo kantiano: o sujeito não o é só de objetos externos. Dentro de mim, nem sei o quanto há de objetivável, mas, haja o que houver, do lado dele está o «mim» e o «me»; o «eu» está do lado oposto, como subjetividade irredutível a toda a objetivação, porque é o antecedente ou o concomitante de todo o objetivar. Note-se bem que não proponho um número incognoscível, ao lado ou aquém da subjetividade, feito à imagem e semelhança do número que está para além da objetividade. Não quero saber de qualquer não posso saber. Posso, poderei conhecer o que «eu» sou; mas não como objeto. Isto dá perfeita conta do motivo por que, em outros contextos, tantas vezes mencionamos a «subjetividade irredutível». [62]