No parágrafo precedente apareceu a palavra “normal”. É uma palavra-chave, mas muito ambígua. Se, por exemplo, digo que não é normal que os seres humanos façam constantemente a guerra, qual o significado dessa palavra, “normal”? Ou ainda, se digo que o homossexualismo não é normal, o que isto significa? Existe uma multiplicidade de sentidos ligados a esta palavra. Proporei pelo menos quatro que me parecem úteis de serem distinguidos. Para tornar isto mais claro, situarei esses sentidos em um cenário — uma história — que indicará a maneira pela qual o termo é compreendido nela.
Primeiro cenário. Um objeto está em vias de subir, enquanto “normalmente” ele deveria cair. Se me dou conta de que se trata de um balão cheio de gás hélio, digo: “Ah, é normal!” Aqui, a palavra “normal” significa que conseguimos introduzir um fenômeno no âmbito de nossa compreensão do mundo. Nesse sentido, poderia dizer que “um cachorro ter cinco patas é normal”. Dizê-lo significa simplesmente que eu me dou conta de que isso pode acontecer.
Neste sentido, tudo é, em princípio, normal. Com efeito, metodologicamente, queremos reintegrar tudo o que vemos em uma certa compreensão. E não cessaremos de fazê-lo antes de ter compreendido os fenômenos que estão diante de nós, isto é, antes de ter dito que eles eram normais. Se, em um caso particular, um fenômeno fosse “anormal”, de acordo com esta primeira significação, simplesmente nós ainda não teríamos compreendido; mas esperaremos mais cedo ou mais tarde compreendê-lo. Nesse sentido, para os cientistas, todos os fenômenos são “normais”, pelo mero fato de que existem.
Segundo cenário: “Um cachorro ter cinco patas, isto não é normal”. Quer-se indicar por isto, em geral, que, de acordo com certos critérios estatísticos, um cachorro de cinco patas não está dentro das “normas”. Do mesmo modo, nesse sentido, pode-se dizer que o homossexualismo não é normal, se entendemos por isto que somente uma minoria da população é homófila. Esse segundo sentido da noção de normalidade refere-se pura e simplesmente a estatísticas.
Entretanto, o estabelecimento de estatísticas depende sempre de pressupostos teóricos. Por exemplo, para dizer que, do ponto de vista estatístico, bá um número X de cachorros com cinco patas, necessito de uma teoria pela qual determinarei que determinado animal é de fato um cachorro. Pode ser que, em nome de uma teoria, decida-se que um animal de cinco patas não é um cachorro. Neste caso, não haverá evidentemente cão de cinco patas. Quando se utiliza a estatística, tomam-se assim decisões em relação aos critérios e categorias utilizados.
Além disso, serão necessárias ainda decisões para determinar o que se entende por um fenômeno “estatisticamente anormal”; de uma maneira ou de outra, haverá uma teoria dizendo aquilo que se espera. A menos que se oculte a decisão tomada ao dizer que tudo que ultrapassar uma certa porcentagem é “anormal”, é preciso considerar que é por uma escolha de critérios que se decide que algo é anormal. Assim, de acordo com certos critérios estatísticos, poder-se-á dizer que a fecundação é um fenômeno anormal, uma vez que há uma ínfima minoria de espermatozoides que servem à fecundação. Além disso, certos fenômenos que só aparecem em um por cento dos casos podem ser considerados normais. Esses exemplos mostram que a estatística não ensina, em matéria de normalidade, nada mais do que aquilo que foi necessário colocar como pressupostos necessários para construí-la (em um âmbito teórico admitido, porém, ela pode ser muito útil, por exemplo, quando se diz, em um processo de produção, que é preciso rejeitar as peças “anormais”).
Terceiro cenário. “O homossexualismo não é normal”. Isto pode significar simplesmente que, nesta sociedade, há uma espécie de consenso para dizer que nos encontramos diante de um fenômeno que não corresponde ao que esperamos. Neste sentido, chamamos de anormal ao que é contrário à expectativa social. É interessante dar-se conta de que esse sentido é provavelmente o que está profundamente fixado em nossas mentalidades. Quando dizemos que alguma coisa é anormal, isto significa que, na sociedade em que nos encontramos, isto é contrário à expectativa comum.
Desse modo, pode-se dizer que todas as crenças éticas em uma dada sociedade permitem uma classificação dos fenômenos em normais e anormais. Se, por exemplo, nessa sociedade, não se admite que um marido bata em sua esposa (ou que uma mulher bata em seu marido), dir-se-á que “bater no seu cônjuge é anormal”. Neste sentido, a palavra “normal” se refere a uma normalidade socialmente admitida (observemos que essa norma não é necessariamente ética, mas pode ser simplesmente cultural: indica uma expectativa).
Quarto cenário. Diz-se por vezes que determinada coisa não é normal quando ela é contrária ao que “deve” ser. Por exemplo, posso dizer: “A corrida armamentista não é normal”. Nesse sentido, não recorro a uma mera crença social, mas coloco um juízo de valor. Segundo esta compreensão ética e normativa da palavra “normal”, fala-se daquilo que eu (ou nós) considero anormal. É possível que eu considere esta coisa anormal referindo-me simplesmente à maneira pela qual coloco os valores, ou porque pretendo referir-me a normas absolutas, ou a normas éticas socialmente admitidas.
Com frequência, essas quatro significações da palavra “normal” são confundidas. E podem se justapor. Não é raro também que alguém tome a primeira significação (é normal porque eu compreendi) pela última (é algo que admito). Assim, posso muito bem compreender que determinada pessoa bata em seu cônjuge e dizer que “depois de tudo que ele ou ela o fez sofrer, acho sua reação normal”, sem decidir se, no quarto sentido, para mim, é normal: isto é, moralmente aceitável. Do mesmo modo, há muitas vezes uma confusão entre o sentido estatístico de uma norma e o seu sentido moral. Posso dizer assim que o fenômeno da homossexualidade é anormal (ou normal) de acordo com os meus valores éticos. E, em um outro sentido, alguns podem considerar que o homossexualismo é admissível eticamente (moralmente normal) e ao mesmo tempo considerar, talvez segundo outros critérios estatísticos, que é estatisticamente anormal. Do mesmo modo, ainda, pode-se considerar que determinada coisa é, em um âmbito teórico bem preciso, estatisticamente rara, mesmo levando em conta que, segundo a expectativa social, ela é normal.
Em suma, a utilização da palavra “normal” é ambígua porque pode dissimular posições bem diferentes. Tomemos um último exemplo: “A prostituição é, em uma sociedade, normal?” De acordo com o primeiro cenário, pode-se compreender o fenômeno e dizer que ele é normal. De acordo com o segundo, como em quase todas as sociedades há uma forma ou outra de prostituição, pode-se dizer que é estatisticamente normal (mas só se emite essa opinião, em geral, com base em critérios no mínimo pouco claros). Em muitas sociedades, ela não é considerada como normal de acordo com o terceiro cenário. Enfim, há um certo debate ético para saber se, em uma dada sociedade, deve-se considerar como normal legalizar a prostituição.
De acordo com as significações, a ciência tem coisas diferentes a dizer em relação ao que é normal. Conforme o primeiro sentido, a ciência não tem nada a dizer porque, por pressuposto, para a ciência, tudo o que acontece deve ser explicado, ou seja, tudo é normal. No sentido estatístico, a ciência pode ter bastante a dizer, mas sob condição de ter precisado bem — de uma maneira que não será jamais inteiramente científica — os critérios sobre os quais se baseará a estatística. Quanto à normalidade como crença social, a sociologia pode constatá-la, mas percebe-se que, sobre pontos particulares, ela não tem nada a ver com resultados científicos.
Finalmente, e esta será uma questão abordada nesta obra: “Pode a ciência dizer algo a respeito do que ‘deveria’ ser?”. Em outros termos, pode a ciência servir de fundamento à ética1. Pode ela determinar o que é o bem ou o mal? (Concretamente, um médico poderia dizer, por exemplo, que comportamentos são bons ou maus em matéria de ética sexual? Ou em matéria de aborto? Pode um geógrafo dizer algo sobre o que é justo em matéria de urbanismo? etc). [FOUREZ]