Seja como for, a era moderna continuou a operar sob a premissa de que a vida, e não o mundo, é o bem supremo do homem; em suas mais ousadas e radicais revisões e críticas dos conceitos e crenças tradicionais, jamais sequer pensou em pôr em dúvida a fundamental inversão de posições que o cristianismo provocou no agonizante mundo antigo. Não importa o quão articulados e conscientes foram os pensadores da modernidade em seus ataques contra a tradição, a prioridade da vida sobre tudo o mais assumira para eles a condição de uma “verdade autoevidente” e como tal sobreviveu até nosso mundo atual, que já começou a deixar para trás toda a era moderna e a substituir a sociedade de trabalhadores por uma sociedade de empregados. Mas, embora seja perfeitamente concebível que os desdobramentos que se seguiram à descoberta do ponto arquimediano teriam tomado um rumo completamente diferente se houvessem ocorrido 1.700 anos antes, quando o mundo, e não a vida, era ainda o bem supremo do homem, não se segue de modo algum que continuemos a viver em um mundo cristão. Pois o que importa hoje não é a imortalidade da vida, mas o fato de que a vida é o bem supremo. E embora esse pressuposto seja certamente de origem cristã, para a fé cristã não passa de uma importante circunstância que a acompanha. Ademais, mesmo se deixarmos de lado os detalhes do dogma cristão e levarmos em conta somente o ânimo geral do cristianismo, que consiste na importância da fé, é óbvio que nada lhe poderia ser mais prejudicial a esse espírito que o espírito de desconfiança e suspeita da era moderna. [ArendtCH:C44]