VIDE projeto, mito, cultura, drama, jogo
Na verdade, «mito», umas vezes se refere a um relato mítico, outras vezes, ao impulso para criá-los, ainda que jamais assomem ao nível da expressão verbal, como específica forma do gênero narrativo. A confusão não é inevitável: basta escrever ou falar de impulso mítico, ou de mito, conforme for o caso. Mas posta no extremo horizonte do pensável, esta distinção desenvolve consequências ou envolve pressupostos que muito excedem a única intenção de prevenir ambiguidades. Pressuposto ou consequência que primeiro se nos apresenta é que o mítico antecedente dos mais antigos de todos os mitos, se possível fosse determiná-los como tais, poderia sobreviver aos últimos, e, portanto, que mito não é necessariamente o único efeito do mítico. Sem querer jogar mais lenha na fogueira, que certamente não serve qualquer intuito senão o de deixá-la arder sem conforto ou desconforto para ninguém — refiro-me ao tão desgastado problema da precedência do mito em relação ao rito ou do rito em relação ao mito, ou, ainda, ao da necessária conexão entre ambos —, diria que um ritual comprovadamente desligado de qualquer mito bem pode ser, ele mesmo, por si e em si mesmo, o mítico expresso em atos que dispensam a mediação da palavra, o que, aliás, muito compreensível se torna, por analogia com as artes. Só a poesia é [36] linguagem em sua expressividade original. Mas a ninguém ocorrerá afirmar que a música, a arquitetura e a plástica não sejam portadoras de mensagens que só mediante um texto explicativo emergiriam ao nível da inteligibilidade. O mito é uma entre outras expressões do mítico. Podemos concordar, sem risco de cair na cilada positivista, que definitivamente relegado para outrora esteja o momento em que a metafísica tomou o lugar da mitologia; que, depois, se enunciem teoremas onde e quando se contavam mitos, mas nem assim se nos abala a convicção de que, em todos os tempos, não seja mítica a terra em que se firma e de que se nutrem as mais fundas raízes da racionalidade. [EudoroMito:36-37]
A mitologia está por escrever, mas nunca foi tão urgente escrevê-la. Pois se escrita estivesse, estivesse ela apenas delineada, nunca nos teríamos encontrado na situação vexatória de mencionar uma e outra vez a palavra «Projeto», que tão pouco parece dizer, sem que a vez chegasse de incluí-la em contexto de leitura mais fácil. Possível é que à mente de alguns leitores menos tímidos já tenha acudido a ideia de que a palavra, tão frequentemente escrita, se não de todo nem em todos os casos, poderia, uma vez por outra, ocupar a posição que mais compete ao «mito» ou ao «mítico». De qualquer modo, quanto a Projeto, Mito, (impulso) Mítico, Cultura, Drama, jogo e outras que ainda esperam a oportunidade de se intrometer neste entrecortado discurso, estou certo de que formam uma constelação de imutável figura, ainda que intercambiáveis sejam uma ou outra de suas «estrelas». Assim se podem alinhar exemplos: Projeto e Cultura chegariam a significar o mesmo se, por Cultura, se designasse o Projeto, não como soma dos conhecidos traços, mas como o desconhecido plano do traçado; este, por seu turno, é o ignoto ou, até, incognoscível Argumento de um Drama que põe em movimento a ação de que o homem julga ter a iniciativa; o Projeto abre um leque de limitado número de possibilidades para lances (que nunca são originais) no jogo que o homem joga com o mundo e consigo mesmo; e todas as cenas da ação dramática, pela qual se representa o Nexo do homem com o mundo e do mundo com o homem, são regidas pelo Argumento que se envolve de Mistério. Tudo isto e o mais que ficou para trás apontavam naturalmente para o (impulso) Mítico, criador de mitos. Evitamos, o quanto possível, pô-lo ao lado do Projeto e, sobretudo, identificá-lo com o mesmo Projeto. E por razões óbvias. Quando se fala de mito ou de (impulso) [42] mítico, mesmo com a reserva de estes não se expressarem necessariamente por relato das gesta dos deuses, sempre nos parece que mito não é mito se a ação figurada por qualquer forma expressiva não é, primacialmente, ação de Entes que são o que nem homem nem mundo é. Ora, de semelhante conceito de mito não nos podíamos nós servir se quiséssemos mostrar que a Cultura, em sua atualidade, é forma semelhante a qualquer das culturas pretéritas. Uma não se distingue abismalmente das outras só porque se tenha de contornar o aparente obstáculo que se constituiria em determinar como mítico o Projeto que certamente não sugere a presença dos deuses que se interpõem entre homem e mundo, ou que a ambos se sobrepõem. Cremos, todavia, que as últimas linhas do parágrafo precedente nos abrem caminhos intransitados, mas não dos que não levam a lugar nenhum. [EudoroMito:42-43]