metafísica heideggeriana

Ao falarmos de metafísica, geralmente visamos certa parte da filosofia ocupando-se dos fundamentos da realidade ou, o que dá no mesmo, da realidade em seus aspectos mais fundamentais. Heidegger toma o termometafísica” num sentido bastante particular e determinado, só se esclarecendo totalmente por todo o contexto de sua filosofia. Em termos bastante simplificados, a metafísica é, para ele, uma certa maneira de determinar o ente. E o que ele chama de “ente”, em conformidade com toda a tradição filosófica ocidental, é tudo aquilo que, de uma maneira ou de outra, pode servir de sujeito ao verbo “ser” na terceira pessoa do singular; por conseguinte, tudo aquilo que, a qualquer título, pode ingressar no campo da experiência, quer se trate de percepção, da imaginação, do sentimento, do pensamento especulativo, da experiência poética ou da experiência mística.

Trata-se de tudo aquilo que, de um modo ou de outro, é; de tudo aquilo que, de uma maneira ou de outra, possui uma forma qualquer de realidade. Ao considerarmos um elemento da realidade como ente, nós o consideramos apenas na medida em que podemos aplicar-lhe este termo simples e misterioso, eminentemente filosófico: ser. Trata-se de um termo absolutamente indeterminado e neutro; e que vale por sua generalidade mesma. Portanto, segundo Heidegger, a “metafísica” é um modo de determinar o ente, de interpretá-lo, de caracterizá-lo e de compreendê-lo. Não se trata, necessariamente, de uma espécie de visão intelectual, de uma concepção explicitamente formulada ou de um discurso sistemático sobre o ente. Sem dúvida, a compreensão do ente pode se exprimir num discurso. Mas ela é, antes de tudo, implícita, vivida. A interpretação do ente é, primordialmente, uma atitude prática e efetiva em relação a ele, um modo de nos situarmos diante dele, de nos relacionarmos com ele. Portanto, no sentido heideggeriano, a metafísica é, primordialmente, uma determinação fundamental do ente que se constitui no implícito e que só é tematizada no discurso de modo secundário.

A segunda tese de Heidegger é a de que cada época da história ocidental se caracteriza por certa forma de metafísica. Por exemplo, esta grande unidade histórica, que denominamos a cultura grega, caracterizou-se por certa metafísica, por certa maneira fundamental de comportar-se em relação ao ente. Talvez o termo que melhor exprime a atitude típica da metafísica grega seja (sempre segundo Heidegger) o de “poiesis”. Este termo grego tornou-se, na língua francesa, o termopoesia”, designando certo gênero literário. Mas precisamos considerá-lo, aqui, em seu sentido primeiro: a “poiesis” é o que é relativo ao “poiein”, ao “fazer”, entendido no sentido do “fazer” artístico, por conseguinte, no sentido da criação. Assim, considerada como uma forma de metafísica, a “poiesis” constituiu um tipo de relação com o ente, na qual ele é interpretado na perspectiva da atividade criadora do artista. Poderíamos evocar aqui o Timeu, no qual Platão põe em cena, tendo em vista descrever a estrutura do cosmos, um “demiurgo”, vale dizer, um grande artista que modela o mundo conforme um modelo ideal.

O que vai nos interessar mais especialmente aqui é a forma de metafísica que domina os tempos modernos, isto é, a época da ciência, época que ainda é a nossa e da qual poderíamos dizer que começou com a filosofia de Descartes; portanto, no início do século XVII. Segundo Heidegger, teria havido, em relação ao ente, uma atitude inteiramente característica dessa época, enquanto distinta da metafísica típica da Idade Média e da metafísica da antiguidade grega. Ele a chama de a “metafísica da representação”.

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Encontramos aí um traço eminentemente fundamental da concepção científica moderna: o conhecimento científico se move no domínio da representação; contudo, o meio por excelência dessa representação é a matemática. O verdadeiro paradigma de todo objeto é o objeto matemático. O que não deixa de ser bastante paradoxal, porque, no final das contas, o objeto matemático é construído: não nos é dado à maneira dos objetos naturais. É muito difícil a questão de sabermos como exatamente ele é construído. Sobre essa questão, não possuímos ainda, no momento atual, uma clareza satisfatória. Em todo caso, é certo que não descobrimos o objeto matemático na percepção: ele é elaborado passo a passo, por atos específicos de abstração e de tematização. Por outro lado, porém, uma vez construído, impõe-se a nós como o objeto que existe nele e por ele mesmo. Foi isto que levou alguns grandes matemáticos a considerar que a realidade matemática existe em si, fora do espírito humano e a pensar que, ao construirmos um objeto matemático, nada mais fazemos, de fato, senão descrever uma realidade que existe fora de nós e independentemente de nós.

Esta realidade não é nem a realidade física nem um aspecto da realidade humana: é uma realidade sui generis, cujo estatuto constitui o objeto da ontologia das matemáticas. Donde ser compreensível (posto que o objeto matemático vale nele e por ele mesmo) que Descartes (neste aspecto, seguido por toda a tradição moderna) tenha feito do objeto matemático o paradigma, o modelo segundo o qual a ciência deve reconstruir a realidade; não somente a realidade física, mas também, pelo menos programaticamente, a realidade humana. O significado de tudo isso é que a metafísica da representação leva a uma separação radical entre o campo transcendental e o campo empírico. [Ladrière]