As preleções que inauguro com esta foram anunciadas como a advertência para uma vida feliz. Adaptando-nos à opinião comum e usual, que não se pode retificar sem aderir desde logo a ela, só poderíamos nos expressar assim; não obstante, segundo o verdadeiro modo de ver as coisas, na expressão vida feliz há algo supérfluo. A saber: a vida é necessariamente feliz, pois é a felicidade; a ideia de uma vida infeliz, pelo contrário, encerra uma contradição. Infeliz só é a morte. Expressando-me rigorosamente, deveria portanto, denominar as preleções que me propus fazer advertência para a vida, ou doutrina da vida; ou então, tomando o conceito por outro lado, advertência para a felicidade, ou doutrina da felicidade. O fato de que, no entanto, de maneira alguma nem tudo o que aparece como vivente seja feliz, funda-se em que o infeliz, de fato e na verdade, tampouco vive, mas, pelo contrário, segundo a maioria de seus elementos, está submerso na morte e no não ser.
A vida mesma é a felicidade, dizia eu. Não pode ser de outro modo: pois a vida é o amor e toda a forma e a força da vida consiste no amor e nasce do amor. (...) Mas o amor é contentamento consigo mesmo, é alegria em si mesmo, gozo de si mesmo, e assim felicidade; e é claro que vida, amor e felicidade são em absoluto uma e a mesma coisa. (...)
O ser, digo, e a vida são uma e a mesma coisa. Só a vida pode existir independentemente, por si e mediante si mesma; e por sua vez a vida, só enquanto é vida, traz consigo a existência. Imagina-se usualmente o ser como algo permanente, rígido e morto; os filósofos inclusive, quase sem exceção, assim o pensaram, exprimindo-o até como absoluto. Mas isto só ocorre porque não se procura pensar o ser com um conceito vivo, o fazendo apenas com um conceito morto. Não está a morte no ser em si e por si, mas sim no olhar mortiço do morto que a contempla. (...)
Inversamente, assim como o ser e a vida são uma e a mesma coisa, do mesmo modo a morte e o não ser são um e o mesmo. Não há uma pura morte, nem um puro não ser. .. Há, sim, uma aparência, e esta é a mistura da vida e da morte, do ser e do não ser. (...)
Temos agora traçado e aberto o caminho para a intelecção da diferença característica entre a verdadeira vida, que é una com o ser, e a mera vida aparente, a qual, enquanto é simples aparência, é una com o não ser. O ser é simples, invariável, e permanece eternamente igual a si mesmo; por isto a vida verdadeira é também simples, invariável, eternamente igual a si mesma. A aparência é uma incessante mudança, sempre oscilante entre o fazer-se e o perecer, e é dilacerada por incessantes alterações. O centro da vida é sempre o amor. A vida verdadeira ama o uno, invariável e eterno; a mera vida aparente tenta amar — se sequer fosse capaz de ser amado, e se ao menos quisesse resistir a seu amor — o caduco em sua caducidade.
Aquele objeto amado da vida verdadeira é o que significamos, ou pelo menos deveríamos significar com a denominação Deus; o objeto do amor da vida só aparente, o caduco, é o que nos aparece como mundo e que assim chamamos. A vida verdadeira vive, pois, em Deus e ama Deus; a vida só aparente vive no mundo e tenta amar o mundo. (...)
A vida verdadeira vive no invariável; portanto, não é susceptível nem de uma interrupção nem de um incremento, como tampouco o invariável mesmo em que vive é susceptível de tal interrupção ou incremento. Em cada instante é inteira; a vida mais alta que é possível em absoluto; e permanece necessariamente em toda eternidade, que é em todo instante. A vida aparente vive só no variável, e por isso não permanece igual a si mesma em dois instantes sucessivos; cada momento que chega devora e absorve o precedente; e assim a vida aparente converte-se em um morrer ininterrupto, e só vive morrendo, e no morrer. (...)
O anseio do eterno, este impulso de unir-se e fundir-se com o imperecível, é a raiz mais íntima de toda existência finita, e não se pode extirpar em nenhum ramo desta existência, a não ser que este ramo deva fundir-se no total não ser. (Die Anweisung zum seligen Leben, lição I.) [Fichte]