REALISMO CRÍTICO TOMISTA

Há meia centena de anos, um certo número de filósofos tomistas se preocuparam em constituir uma teoria crítica do conhecimento culminando no realismo, mas que não o suporia como dado. Tratar-se-ia de delimitar uma espécie de terreno neutro constituindo uma posição inicial comum, que realistas e idealistas poderiam, de acordo, escolher como seu ponto de partida, na esperança de finalmente se encontrarem no final.

Este ponto de partida comum, ou pelo menos aceitável para ambos os lados, só pode ser o pensamento, na medida em que se apresenta como um objeto imediato de reflexão. Partiríamos portanto do cogito, mas sem que esteja precisado ainda, neste momento inicial, se este cogito se dobra sobre si mesmo, na interioridade sem saída de uma consciência idealista, ou se desemboca efetivamente em uma realidade exterior. Eu penso, e me é impossível duvidar disso no instante mesmo em que penso. Mas não sei ainda, ou não desejo saber, qual é a significação desse ato. Não o saberei senão ulteriormente, quando terei compreendido, graças às análises que vou empreender, o que é pensar. Parto, portanto, do fato puro do pensamento e vou procurar, através de um método de reflexão sobre meu ato, o que é pensar.

Tomemos como exemplo dessa atitude filosófica um dos trabalhos mais sérios que foram tentados nessa base, o Essai d’une étude critique de la connaissance do Pe. Roland-Gosselin (Paris, 1932); e ouçamos esse autor definir ele próprio sua posição inicial: "Do ponto de vista da reflexão crítica, o estudo do espírito repousa solidamente sobre o fato de que o ato de pensar pode ser apreendido imediatamente na consciência de si. A homogeneidade perfeita, a unidade do cognoscente e do conhecido, no ato de reflexão, é imediatamente evidente, e nenhuma reflexão ulterior, se exercendo sobre a reflexão primeira, pode introduzir nela a obscuridade e a dúvida. Existe aí um ponto de partida absoluto, porque há de início um retorno absoluto do espírito sobre si..." (p. 11). E daí, sem nada prejulgar de seu valor definitivo, se encontrará estabelecido um contato inicial com o idealismo; "Como o idealismo, com efeito, aceitaremos inicialmente considerar o ato de nosso pensamento, o juízo, a título de simples relação atual entre um sujeito e um objeto... Por que isto? Porque não cabe abandonar benevolamente ao idealismo o privilégio de uma posição sólida, de uma base de operação inatacável." (p. 35).

Essa base de operação é de fato inatacável? Desde o início, pode tal base se autorizar do patrocínio de Tomás de Aquino? Sabe-se que este normalmente desenvolve seu pensamento a partir do realismo. Mas, pelo menos, não abriu, em alguma circunstância, as vias para um tipo de reflexão filosófica que encontraria seu apoio na consciência que temos de nossa atividade intelectual? Um certo texto do De Veritate foi frequentemente interpretado neste sentido, texto que Mgr. Noël (Notes d’épistémologie thomiste, p. 59-60), não teme colocar em paralelo com uma passagem das Regulae de Descartes e do primeiro prefácio da Crítica da Razão Pura, onde somos convidados a proceder a uma crítica reflexiva geral de nossa faculdade de conhecer. "A verdade... é na inteligência ao mesmo tempo sequência do ato da inteligência e conhecida pela inteligência; ela se segue à operação da inteligência na medida em que o juízo desta potência se refere à coisa, enquanto ela é; e ela é conhecida pela inteligência na medida em que esta reflete sobre seu ato, e não somente enquanto ela conhece este ato, mas enquanto tem conhecimento de sua proporção à coisa, secundum quod cognoscit porportionem ejus ad rem... " E Tomás de Aquino afirma que esse conhecimento supõe que se saiba o que é esse próprio ato em si mesmo e a inteligência que está no seu princípio: "na natureza da qual está implicado que ela deve se conformar às coisas: in cujus natura est ut rebus conformetur". E conclui que é por um ato de conhecimento reflexivo que a inteligência atinge a verdade, (De Veritate, q. 1, a. 9). Longe de nós o pensamento de reduzir a importância desse texto, que nos informa exatamente a respeito da via pela qual nossa inteligência toma consciência de seu valor realista; mas não lhe pedimos demais, no momento em que se vê aí um convite para constituir uma epistemologia reflexiva, no sentido precedentemente definido? Os partidários de um realismo imediato e sem crítica prévia aí encontram, também, algo em que fundar suas pretensões. Tomás de Aquino, em realidade, não pensava aqui no debate a propósito do qual é invocado.

Qualquer que seja a significação e a dimensão verdadeira desse texto, não se pode, sem trair a inspiração geral do tomismo, instituir uma crítica reflexiva do conhecimento que inicialmente não implicaria nem idealismo, nem realismo? Não é esta a opinião de Gilson que, após outros, mas com brilho maior, manifestou-se contra todas as tentativas para estabelecer um "realismo crítico" (Cf. sobretudo Réalisme thomiste et critique de Ia connaissance). Coloquemos à parte desde logo, na viva polêmica que foi empreendida por esse autor, uma querela de palavras. Gilson não quer absolutamente ouvir falar de "realismo crítico"; é uma expressão que revela um disparate: se alguém é crítico, não poderá jamais ser realista; mas é preciso subentender que a palavra "crítico" é tomada aqui no sentido kantiano, que, com efeito, excluiu o realismo. Outros, Maritain por exemplo, julgam que não cabe abandonar aos idealistas a prerrogativa de constituir uma filosofia "crítica", com a condição evidentemente de que esse termo seja liberado de todo pressuposto subjetivista.

Mas isso pouco importa. Reportemo-nos aos argumentos de fundo. Para Gilson existe uma lógica interna dos sistemas; se começamos com Descartes pela dúvida e pelo Cogito, ou se adotamos no seu ponto de partida o transcendentalismo kantiano, não recuperaremos jamais o real e terminaremos idealistas: partindo-se do conhecimento previamente isolado do real, jamais se conseguirá reencontrá-lo. Deveremos pois, para Gilson, nos refugiar, em face da crítica idealista, nas afirmações espontâneas de um realismo ingênuo? De modo algum, pois o realismo tomista é um realismo refletido ou que tem perfeitamente consciência de si mesmo e que repousa, não sobre qualquer obscuro instinto, mas sobre a evidência que tenho de ser, no meu conhecimento, relativo a um objeto real. Uma vez, contudo, reconhecido este dado inicial do realismo fundamental do meu pensamento, resta-me ainda, do ponto de vista epistemológico, um trabalho considerável a realizar: o como desta apreensão primeira, suas diversas condições, não se encontram imediatamente esclarecidos. Além disso, ser-me-á preciso proceder a uma crítica dos meus conhecimentos com a finalidade de determinar sua exata dimensão e suas mútuas relações. Todo esse esfôrço de reflexão e de análise fará do realismo, que professo espontaneamente na minha vida corrente, um realismo verdadeiramente filosófico ou metódico, mas sem que em momento algum deva fazer intervir esta suposição de que, talvez, meu pensamento seja puramente subjetivo.

Que partido convém tomar? É preciso, já no momento inicial da reflexão crítica, reconhecer o realismo, ou é preferível partir do puro fato do conhecimento sem que seja ainda precisado se ele tem um valor de transcendência? A solução desta alternativa depende para nós da resposta que se dará a esta questão: é possível formar uma noção do conhecimento que não implique sua ordenação ao real?

Do ponto de vista da percepção da verdade — isto é, da relação entre o pensamento e a coisa — distinguem-se, na filosofia tomista, duas espécies de conhecimento: de um lado, as simples apreensões e as sensações e, de outro lado, os juízos. Sabe-se que formalmente e enquanto conhecida, a verdade não se encontra senão na segunda dessas categorias de conhecimento. Na sensação pura ou na simples intelecção, o espírito não sabe se é verdadeiro, uma vez que ainda não refletiu sobre si mesmo, nem em consequência, tomou posição em face do objeto que conhece; a relação do pensamento, ou do sujeito pensante, com a coisa exterior, só se manifesta no juízo. Se tal se dá, dever-se-á concluir, com efeito, que existe um primeiro momento do conhecimento onde o objeto não aparece na sua distinção do sujeito: mas devemos nos apressar em acrescentar que neste nível, que, por outro lado, corresponde a um estado instável e inacabado do pensamento, o próprio conhecimento não é consciente: sou como que absorvido pelo objeto. Se venho então a refletir sobre meu ato, meu pensamento se torna consciente em mim, objeto e sujeito se destacam um do outro, vejo que meu conhecimento é verdadeiro. Mas todo esse movimento reflexivo e as descobertas que o acompanham supõem que me pus a julgar. O conhecimento como a colocação de um objeto em face de um sujeito, e como percepção da relação original que os refere um ao outro, implica o juízo. Neste nível, o problema real, isto é, das relações do pensamento com o ser, se encontra colocado. Mas não está ao mesmo tempo resolvido? Não é possível destacar do juízo o seu valor realista. Tal é a conclusão na qual nos deteremos.

Seguir-se-á daí que a suposição de uma relação consciente, entre o sujeito e o objeto do conhecimento privado de sua significação realista, corresponde a uma construção do espírito de fato artificial: desde o momento em que me ponho a refletir sobre meu pensamento, estou no estado daquele que julga. Conhecer, para uma inteligência humana, é julgar; e julgar, teremos a ocasião de repetir, é perceber o que é. Não posso portanto, se quero tomar meu ponto de. partida no conhecimento, senão partir, ao mesmo tempo, do realismo. Quanto ao fundo da questão, Gilson parece estar certo, ficando evidentemente entendido que múltiplos esclarecimentos concernentes ás condições e à dimensão precisa deste realismo ficam ainda por dar.

Agora nos é possível, em conhecimento de causa, julgar sobre a questão das relações da "crítica" com a metafísica. Os epistemólogos de tendência criticista, aos quais fizemos alusão, eram naturalmente levados a separar as duas disciplinas e a fazer da "crítica" uma espécie de introdução à metafísica, ou pelo menos um método de verificação autenticando com autoridade os seus resultados: não se nega absolutamente que não seja possível continuar, como no passado, a construir uma metafísica tendo um certo valor sobre as bases do realismo, mas, se se quiser proceder de modo científico, é preciso, dizem, começar por experimentar criticamente nossos meios de conhecer, com isenção de todo preconceito. Deixando de lado, aqui, a questão de saber se não haveria uma certa vantagem prática, de ordem apologética por exemplo, em agrupar sob um mesmo título todo um conjunto de estudos convergentes sobre o valor do conhecimento ou de nossos diversos conhecimentos, devemos afirmar, todavia, de modo bastante distinto, que a separação observada e por vezes realizada da especulação objetiva e da crítica tem o inconveniente de dissociar de maneira artificial e perigosa duas funções que, de fato, se nos apareceram estreitamente unidas e solidárias uma da outra neste ato adulto de conhecimento que é o juízo. Todo juízo é por si mesmo reflexo ou, se se quiser, crítico. Segue-se daí que a metafísica que, como sabemos, repousa de modo especial sobre os juízos, é essencialmente reflexa e crítica. O metafísico, consciente daquilo que afirma, sabe porque afirma e que o que afirma é verdadeiro. Todos os aspectos subjetivos da atividade psicológica que precisou utilizar não são, talvez, no mesmo momento, perfeitamente claros para ele, mas, do lado objetivo, o que reconhece é absolutamente verdadeiro e nenhuma crítica prévia ou paralela poderia mudar nada. A metafísica, como por outro lado a filosofia inteira, é reflexa ou crítica, ou então é um puro jogo do espírito. Só existe, pois, para nós uma única sabedoria suprema: a metafísica, que possui, de modo, eminente, valor de uma crítica. [Gardeil]