PENSAMENTO POLÍTICO MEDIEVAL

O desaparecimento do abismo que os antigos tinham de transpor diariamente a fim de transcender o estreito domínio do lar e “ascender” ao domínio da política é um fenômeno essencialmente moderno. Esse abismo entre o privado e o público ainda existia de certa forma na Idade Média, embora houvesse perdido muito da sua importância e mudado inteiramente de localização. Já se disse com acerto que, após a queda do Império Romano, foi a Igreja Católica que ofereceu aos homens um substituto para a cidadania antes outorgada exclusivamente pelo governo municipal. [R. H. Barrow, The romans (1953), p. 194] A tensão medieval entre a treva da vida diária e o grandioso esplendor de tudo o que era sagrado, com a concomitante ascensão do secular ao religioso, corresponde em muitos aspectos à ascensão do privado ao público na Antiguidade. É claro que a diferença é muito marcante, pois, não importa quão “mundana” a Igreja tenha se tornado, o que mantinha reunida a comunidade dos crentes era essencialmente sempre uma preocupação extramundana. Embora só com alguma dificuldade seja possível equacionar o público com o religioso, realmente o domínio secular, sob o feudalismo, era inteiramente aquilo que o domínio privado havia sido na Antiguidade. Sua marca distintiva era a absorção de todas as atividades na esfera do lar – onde tinham significação apenas privada – e, consequentemente, a própria ausência de um domínio público. [As características que E. Levasseur (Histoire des classes ouvrières et de l’industrie en France avant 1789 [1900]) reconhece na organização feudal do trabalho aplicam-se às comunidades feudais como um todo: “Chacun vivait chez soi et vivait de soi-même, le noble sur sa seigneurie, le villain sur sa culture, le citadin dans sa ville” (p. 229).]

É característico desse crescimento da esfera privada e, incidentalmente, da diferença entre o antigo chefe de família e o senhor feudal que este último pudesse administrar justiça dentro dos limites do seu feudo, ao passo que o antigo chefe de família, embora pudesse exercer um comando mais ameno ou mais severo, não conhecia leis nem justiça fora do domínio político [v. escravos]. A transferência de todas as atividades humanas para o domínio privado e a conformação de todas as relações humanas ao molde do lar atingiram profundamente as organizações profissionais especificamente medievais nas cidades – as guildas, confréries e compagnons – e mesmo as primeiras companhias comerciais, nas quais “a reunião original do lar parecia aludida pela própria palavra ‘companhia’ (companis) (...) [e] em expressões como ‘aqueles que comem do mesmo pão’ ‘homens que compartilham do mesmo pão e do mesmo vinho’” [W. J. Ashley, An introduction to English economic history and theory, p. 415.]. O conceito medieval do “bem comum” longe de indicar a existência de um domínio político, reconhecia apenas que os indivíduos privados têm interesses materiais e espirituais em comum, e só podem conservar sua privatividade e cuidar de seus próprios negócios quando um deles se encarrega de zelar por esse interesse comum. O que distingue da realidade moderna essa atitude essencialmente cristã em relação à política não é tanto o reconhecimento de um “bem comum” quanto a exclusividade da esfera privada e a ausência daquele domínio curiosamente híbrido que chamamos de “sociedade” no qual os interesses privados assumem importância pública.

Não é surpreendente, portanto, que o pensamento político medieval, preocupado exclusivamente com o domínio secular, tenha permanecido ignorante do abismo entre a vida protegida no lar e a impiedosa exposição na pólis e, consequentemente, da virtude da coragem como uma das atitudes políticas mais elementares. O que continua a ser surpreendente é que tenha sido Maquiavel o único teórico político pós-clássico que, em um extraordinário esforço para restaurar a antiga dignidade da política, percebeu o abismo e compreendeu até certo ponto a coragem necessária para transpô-lo, que o descreveu na elevação “do Condottiere de uma baixa posição para um alto posto” da privatividade para o principado, isto é, das circunstâncias comuns a todos os homens para a glória resplandecente das grandes realizações. [Essa “ascensão” de uma esfera ou categoria mais baixa para outra mais alta é um tema recorrente em Maquiavel (cf. especialmente O príncipe, Capítulo 6, acerca de Hiero de Siracusa, e Capítulo 7; e Discursos, Livro II, Capítulo 13).] [ArendtCH, 5]