ENCICLOPÉDIA

(in. Encyclopedia; fr. Encyclopédie; al. Enzyklopüdie; it. Enciclopédia).

Esse termo, que significa propriamente ciclo educativo, educação completa em suas fases, portanto nas disciplinas que lhe servem de fundamento, agora é usado fiara designar o sistema das ciências, o conjunto total das ciências em suas relações imutáveis de coordenação e subordinação (na sua hierarquia), tais como podem ser reconhecidas ou estabelecidas pela metafísica ou por outra ciência predominante. Como investigação racional autônoma, a filosofia foi a matriz da qual as disciplinas isoladas foram-se separando pouco a pouco, até alcançar autonomia; como metafísica, ou "ciência primeira", muitas vezes se reservou o direito de julgar essas disciplinas em termos de alcance ou importância e de prescrever-lhes limites e condições. Portanto, a tendência a ser ou a valer como Enciclopédia, ou pelo menos a estabelecer ou reconhecer uma Enciclopédia, foi um dos aspectos fundamentais do pensamento filosófico. O primeiro projeto de Enciclopédia pode ser visto nos quatro graus do conhecimento, estabelecidos por Platão no VII livro de A República. Aos dois graus da opinião (conjectura e crença) pertencem as artes e os ofícios que lidam com as coisas sensíveis e com as suas imagens, portanto também a poesia e a arte imitativa. Ao primeiro dos dois graus racionais, a razão discursiva ou dianôia, pertencem a geometria, a aritmética, a música e a astronomia, ou seja, as disciplinas que partem de hipóteses e utilizam imagens, ainda que tenham por objeto conceitos puros. Ao quarto e último grau pertence tão-somente a dialética, que é a ciência do filósofo (Rep., VI 510). Aristóteles baseava sua Enciclopédia na distinção entre necessário e possível. O necessário (o que não pode ser diferente do que é) é objeto das ciências teóricas: filosofia, física e matemática. O possível é objeto das ciências práticas (ética e política) e das disciplinas poéticas (ou produtivas), as artes (Et. Nic, VI, 3-4). Enquanto es-toicos e epicuristas concordaram em reduzir a sua Enciclopédia a três ciências fundamentais, lógica, física e ética, a Idade Média permaneceu substancialmente fiel ao sistema enciclopédico de Aristóteles, que culminou na teologia, a que todas as outras ciências se subordinavam (Tomás de Aquino, S. Th., I, q. 1, a. 5). No séc. XVII, Francis Bacon apresentou o projeto de uma Enciclopédia fundada na tripartição entre ciências da memória, ciências da fantasia e ciências da razão (De augm. scient., II, 1). Essa distinção foi aceita por D’Alembert e serviu de base para a Encyclopédie. Diz D’Alembert: "A memória, a razão e a imaginação são as três maneiras diferentes pelas quais nossa alma atua sobre os objetos dos seus pensamentos... Essas três faculdades constituem as três divisões gerais do nosso sistema e os três objetos gerais dos conhecimentos humanos: a história, relacionada com a memória, a filosofia, que é o fruto da razão, as belas-artes, que nascem da imaginação" (Discours préliminaire de VEncyclopédie, em CEuvres, ed. Condorcet, p. 112). Todavia, a Enciclopédia francesa, cujo espírito iluminista se inspirava predominantemente no empirismo, não insistiu no caráter total e definitivo do sistema das ciências, mas entendeu a Enciclopédia sobretudo como a tentativa de abranger, numa síntese rápida e completa, os resultados do saber positivo. E foi essa justamente a principal função da Enciclopédia à qual se deveu a enorme difusão, no séc. XVIII, por toda a Europa, dos resultados das ciências e da crítica racionalista da tradição. Esse mesmo conceito foi assumido no século seguinte pelo positivismo como fundamento para a definição da filosofia; com Comte, porém, foi reduzido a sistema, com base naquilo que ele julgava ser sua descoberta fundamental, a lei dos três estados. Comte atribuiu graus às ciências segundo sua ordem cronológica de entrada na fase positiva, mostrando que essa ordem é também a que vai do grau máximo ao grau mínimo de simplicidade e generalidade. Começa dividindo a física em inorgânica e orgânica e observa que a primeira estuda fenômenos muito mais simples, pois, enquanto os fenômenos orgânicos dependem dos inorgânicos, estes últimos não dependem dos primeiros. A física inorgânica, por sua vez, será primeiro física celeste (ou astronomia) e depois física terrestre, ou seja, física propriamente dita, e química. Divisão análoga será feita para a física orgânica: haverá uma física orgânica ou fisiológica, que concerne ao indivíduo, e uma física social (ou sociologia), que diz respeito à espécie. A Enciclopédia das ciências será, portanto, constituída por cinco disciplinas fundamentais: astronomia, física, química, biologia e sociologia. De tal Enciclopédia não fazem parte nem a matemática nem a psicologia: a matemática porque é a base de todas as ciências e portanto não pode ocupar um lugar à parte; a psicologia porque não é uma ciência, já que se funda numa pretensa "observação interior", que é impossível, pois pressuporia o indivíduo dividido em duas partes, uma observadora, a outra observada (Cours de Phil. Positive, I, pp. 75 ss.). Essa Enciclopédia de Comte foi amplamente aceita pela cultura moderna e contemporânea mesmo fora do positivismo, porque levava em conta a situação e as funções reais das ciências, ainda que Comte às vezes tenha pretendido impor restrições ou limitações insustentáveis a tais ciências. A ela foi contraposta a Enciclopédia das ciências de Hegel, que é a maior expressão do romantismo idealista. Para Hegel só existem três disciplinas fundamentais, que são a lógica, a filosofia da natureza e a filosofia do espírito. As três ciências têm por objeto a Ideia, ou seja, a autoconsciência infinita: a primeira considera a Ideia em si e por si, antes de seu desenvolvimento no mundo; a segunda considera a Ideia no seu "ser outro", no seu exteriorizar-se e alienar-se no mundo da natureza; a terceira, enfim, considera a Ideia que "retorna a si mesma", que toma consciência de si como princípio criador de tudo (Enc., § 18). Mas nessa Enciclopédia não havia lugar para as ciências positivas, que se vinham constituindo autonomamente. Para Hegel, essas ciências não tinham valor de verdade, porque fundadas em elementos que ele chama de "acidentais", não pertencentes à substância racional do mundo, que é a Ideia (Ibid., § 16). Hegel utiliza-as somente para extrair um material que depois elabora a seu modo no esquema enciclopédico descrito, mas sem nenhuma consideração pelos métodos de pesquisa e verificação de que cada disciplina se serviu para elaborá-lo.

Na segunda metade do séc. XIX e nos primeiros anos do séc. XX, a Enciclopédia positivista de Comte e a Enciclopédia idealista de Hegel constituíram os dois modelos fundamentais a que os filósofos fizeram referência. Deve-se observar, porém, que enquanto a Enciclopédia de Comte procura abranger as ciências e as disciplinas efetivas, que haviam se constituído com autonomia de métodos, complexidade e riqueza de resultados, a Enciclopédia de Hegel alija esse conjunto de ciências e o rebaixa a simples fase preparatória ou temporária, substituindo-o por um conjunto de especulações metafísicas que só têm sentido a partir de determinados pressupostos. A esse segundo tipo de Enciclopédia pertence também a Enciclopédia enunciada por Croce, fundamentada na distinção de duas formas de espírito, a teórica e a prática, e na subdivisão de cada uma delas em dois graus, conhecimento do individual e conhecimento do universal, volição do individual e volição do universal. Croce distingue a estética, que tem por objeto o conhecimento individual, ou seja, a arte; a lógica, que tem por objeto o conhecimento do universal, ou seja, a filosofia; a ciência econômica, que tem por objeto a volição do individual e por isso compreende o estudo de tudo o que é útil, logo do direito, da economia, etc; e a ética, que tem por objeto a volição do universal (Fil. da prática, 1909, II, cap. 1). Essa Enciclopédia também alija as ciências da natureza e as reduz a simples instrumentos práticos que, mediante "pseudoconceitos", fornecem meios de economizar energia para a ação (Lógica, II, cap. 6). A Enciclopédia de Hegel e a de Croce foram simplesmente iniciativas filosóficas unilaterais, que os filósofos de certas tendências aproveitaram. Não foram verdadeiras Enciclopédia no sentido de exercer alguma ação de coordenação efetiva entre as pesquisas de cada ciência e da integração de seus resultados em um sistema de conhecimento. É justamente essa a tendência de alguns filósofos e cientistas contemporâneos de orientação neopositivista e neo-empirista que, para isso, trabalharam e trabalham numa Enciclopédia internacional da ciência unificada, cujos primeiros volumes começaram a ser publicados em 1938; cada um deles era dedicado aos fundamentos de determinada disciplina. É preciso, porém, observar que essa tentativa não demonstra acordo suficiente no modo de entender a unidade da ciência: alguns, como p. ex. Neurath, entendem-na como combinação dos resultados das várias ciências e tentam axiomatizá-los num sistema único; outros, como unificação no campo da lógica ou no campo da semiótica (Morris) ou do ponto de vista do próprio método da ciência (Dewey) (cf. Encyclopedia of Unified Science, I, 1, 1938). Na verdade, hoje parece utópico querer reencontrar e expor de modo definitivo, como sempre fez a metafísica, a unidade das ciências, visto que as próprias ciências não toleram durante muito tempo uma disciplina determinada, e cada uma se reserva ampla liberdade de pesquisa, organização e linguagem. Portanto, hoje parece claro que a exigência enciclopédica da filosofia é mais exequível na forma livre e descompromissada de reconhecimento da possibilidade de múltiplas relações entre as ciências e de pesquisa e determinação dessas relações em campo do que na forma tradicional de "unificação" das ciências. E esse reconhecimento, essa pesquisa e essa determinação ainda constituem tarefas fundamentais da filosofia (v. metafísica; classificação das ciências). [Abbagnano]