paixão

Tão frequente quanto a caracterização nietzschiana da vontade como afeto é sua caracterização da vontade como paixão. Daí não se pode concluir sem mais que Nietzsche identificaria afeto e paixão, mesmo que ele não tenha chegado a uma clarificação expressa e a-brangente da diferença essencial e da conexão do afeto com a paixão. Como é possível supor, Nietzsche conhece a diferença entre o afeto e a paixão. Por volta de 1882, ele diz o seguinte sobre o seu tempo: “Nossa época é uma época agitada e, exatamente por isso, não é nenhuma época de paixão; ela se aquece continuamente porque sente a falta de calor — no fundo, está congelando. Não acredito na grandeza de todos esses ‘grandes acontecimentos’ dos quais vós falais” (XII, 343). “Apesar de tudo isso, a época dos grandes acontecimentos será a época dos menores efeitos, uma vez que os homens são feitos de borracha e se mostram por demais elásticos.” “Agora, os eventos só se tornam ‘grandes’ por meio de um eco — o eco dos jornais” (XII, 344).

Na maioria das vezes, Nietzsche emprega a palavra paixão como possuindo o mesmo significado de afeto. No entanto, se ira e ódio, ou alegria e amor, por exemplo, não são apenas diferentes como um afeto é distinto de outro, mas são diferentes como um afeto e uma paixão, então também precisamos aqui de uma determinação mais exata. Um ódio tampouco pode ser gerado por uma resolução, ele também parece se abater sobre nós como o acometimento da ira. Não obstante, esse acometimento é essencialmente diverso. O ódio pode explodir repentinamente em um feito ou em uma exclamação, mas isso apenas porque ele já se abateu sobre nós, porque ele já veio à tona em nós e foi alimentado, como dissemos, em nós mesmos; só pode ser alimentado aquilo que já está aí e vive. Em contrapartida, não dizemos e nunca temos em vista: uma ira é alimentada. Como o ódio nos transpassa em toda a nossa essência muito mais originariamente, ele também nos mantém coesos; tal como o amor, ele traz consigo uma coesão originária e um estado durável para o interior de nosso ser essencial. A ira, por outro lado, assim como ela nos acomete, logo se esvai — logo vira fumaça, como costumamos dizer. Um ódio não vira fumaça e se dissipa depois de uma irrupção, mas cresce e se solidifica, dilacera e consome nosso ser. Todavia, essa coesão constante que ganha por meio do ódio o cerne da existência humana não a torna reclusa nem cega. Ao contrário, ela garante visão e reflexão. O homem irado perde o poder de reflexão. O homem tomado pelo ódio tem o seu poder de meditação e de reflexão aumentados até a “mais fina” maldade. O ódio nunca é cego, mas clarividente; somente a ira é cega. O amor nunca é cego, mas clarividente; somente o estado daquele que está enamorado é cego, fugidio e brusco, um afeto e não uma paixão. A paixão pertence uma ampla expansão de seu campo de vinculação e uma abertura de si mesmo; também no ódio acontece uma tal expansão, na medida em que ele persegue o odiado constantemente por toda parte. Essa expansão do campo de vinculação em meio à paixão não nos eleva, porém, simplesmente para fora de nós mesmos, ela reúne, sim, muito mais o nosso ser sobre o seu solo próprio, ela abre esse solo pela primeira vez em meio a essa reunião, de modo que a paixão é aquilo por meio do que e em que tomamos pé sobre nós mesmos e de maneira clarividente nos apoderamos do ente a nosso redor e em nós.

A paixão assim compreendida lança novamente uma luz sobre o que Nietzsche denomina vontade de poder. A vontade como o ser-senhor-sobre-si-mesmo nunca é uma encapsulação do eu em seus estados. A vontade é, como dissemos, de-cisão na qual o que quer se expõe da maneira mais ampla possível ao ente, a fim de mantê-lo na esfera de seu comportamento. Não o acometimento e a excitação são agora característicos, mas a expansão clarividente do campo de vinculação que é ao mesmo tempo uma reunião da essência que se encontra na paixão.

Afeto: o acometimento que nos agita cegamente. Paixão: a expansão clarividente e reunidora do campo de vinculação ao ente. Nós falamos e só olhamos de fora ao dizermos: uma ira se inflama e se dissipa, dura pouco; um ódio, contudo, dura muito. Não; um ódio ou um amor não duram apenas mais tempo. Ao contrário, eles trazem pela primeira vez uma verdadeira duração e uma verdadeira constância para a nossa existência. Em contrapartida, um afeto nunca consegue viabilizar algo assim. Como a paixão restaura nosso ser, nos libera e nos deixa soltos para os seus fundamentos; como a paixão é, ao mesmo tempo, a expansão do campo de vinculação até a amplitude do ente, por isso pertence à paixão — e o que se tem em vista aqui é a grande paixão — ser dispendiosa e engenhosa. Não lhe pertence apenas a capacidade, mas mesmo a necessidade de retribuir, e, ao mesmo tempo, aquela despreocupação quanto ao que acontece com o dispendido, aquela superioridade que repousa em si mesma e que caracteriza as grandes vontades.

Paixão não tem nada a ver com um mero desejo, não é coisa dos nervos, da exaltação e do excesso. Nietzsche põe na conta de todos esses estados, por mais excitados que possam parecer, o fato de produzirem uma extenuação da vontade. A vontade só é vontade como querer-para-além-de-si-mesmo, como mais-querer. A grande vontade tem em comum com a grande paixão aquela calma do movimento que se perfaz lentamente. Essa calma faz com que dificilmente se responda, com que dificilmente se reaja; e isso não por insegurança e lentidão, mas por uma segurança que expande amplamente o seu campo de vinculação e pela leveza interna daquilo que é superior. (N1)