No entender de sociólogos contemporâneos, a sociologia do século XIX debateu-se num mundo de falsos problemas. Para Georges Gurvitch foram essencialmente os seguintes: 1°, o problema do destino da humanidade, herdado da chamada filosofia da história; 2.°, o das sociologias da «ordem» e do «progresso»; 3.°, o do pretenso conflito entre o indivíduo e a sociedade; 4.°, o da falsa alternativa «psicologia ou sociologia»; 5.°, o do fator dominante; e, finalmente, 6.°, o das leis sociológicas.
A bem dizer, todos os sociólogos com alguma autoridade renunciaram no século XX a procurar determinar «leis sociológicas», justificando essa abstenção ou com a insuficiente maturidade da sociologia ou afirmando que o objeto e o método próprios da sociologia excluem a possibilidade de determinar leis sociológicas. […]
Em biologia, em psicologia, em sociologia a validez de toda «lei» é apenas muito relativa, porque só pode aplicar-se no interior de um tipo biológico, psicológico ou social; o tipo descontínuo e qualitativo predomina aqui nitidamente sobre a lei, que, além do mais, não pode basear-se em fenômenos que se repetem estritamente e deveria, portanto, ser preferivelmente considerada como regularidade tendencial.
Por isso, cumpre exprimirmo-nos de modo preciso quando falamos de «leis», e em particular de «leis sociológicas»:
a) Devemos, em primeiro lugar, inteirar-nos de que o domínio das leis e o domínio da causalidade não coincidem; as leis podem ser matemáticas e estatísticas e determinar apenas, no respeitante ao real, probabilidades, enquanto a causalidade pode ser singular e individualizada e só determinar encadeamentos que se não repetem.
b) Ê duvidoso que em sociologia seja possível determinar leis denominadas causais, dada a descontinuidade demasiado grande entre causa e efeito. Entre o antecedente e o consequente intervém uma margem de incerteza grande de mais para permitir a elaboração de previsões generalizadas sobre a repetição das mesmas causas e dos mesmos efeitos. Esta repetição das causas nunca é segura nem completa; e a produção por elas de efeitos idênticos ainda o é menos, devido à evolução e à flutuação incessante das circunstâncias e das conjunturas sociais.
c) São possíveis e desejáveis «explicações causais» em sociologia, sob a condição de se procurar a causa no próprio social, como já o indicou Durkheim; noutros termos, e para usar a expressão de Marcel Mauss, as causas devem descobrir-se nos «fenômenos sociais totais». De modo ainda mais preciso, poderia dizer-se que a explicação causal em sociologia se deve basear nos tipos sociais descontínuos considerados em todos os seus níveis de profundidade ao mesmo tempo. Esta explicação causal pelo tipo global ou pelo quadro social particular está ainda ligada à particularidade da conjuntura social. Afirma-se, desta maneira, mais próxima da causalidade histórica que da causalidade generalizada. Assim, por exemplo, é sabido que foi possível, nos séculos XIX e XX, verificar uma correspondência entre o aumento do número de gente letrada e o acréscimo da taxa dos suicídios. Não deve concluir-se daí que a instrução é a causa do suicídio. Efetivamente, a única conclusão v que se impõe é que, num quadro social particular e numa conjuntura social precisa, a instrução e o suicídio parecem ser efeitos da mesma situação; trata-se do enfraquecimento de certos laços sociais que nem sempre são compensados de modo suficiente por outros laços que se estabelecem por virtude do alargamento da instrução1.
d) O estabelecimento entre fenômenos sociais de gênero diferente de correlações funcionais, cuja constância não é completa, porque o quadro social nunca é total ou parcialmente o mesmo, não representa nem uma explicação causal nem uma formulação de lei; é uma simples descrição de estrutura de um tipo social dado. Tais são as correlações funcionais que se estabelecem na sociologia do conhecimento, da moral, da religião, do direito. As correlações funcionais são muitas vezes tomadas por uma explicação causal, ou mesmo por leis, pela única razão de se identificarem causa (que em sociologia é sempre global) e fatores (cuja hierarquia é muito variável na realidade social e muda com o tipo social). Ora, mesmo em física, não devemos identificar causas e fatores. Quando, por exemplo, se trata de explicar o rebentar de um rochedo, os fatores serão: a medida da resistência da rocha, a dinamite e o fogo, enquanto a causa será a força e a dilatação do gás. Em sociologia, todos os níveis de profundidade e todos os aspectos da realidade social são «fatores» cuja intensidade é essencialmente variável; a causa, essa, reside numa constelação particular da sua hierarquia, que é específica para cada quadro e para cada conjuntura.
e) As únicas leis que podem ser válidas em sociologia são leis de probabilidade baseadas em estatísticas, mas aplicam-se apenas a domínios muito restritos, preferivelmente de base material (morfológica e ecológica), e ao comportamento coletivo observável do exterior e mais ou menos previsível, quer dizer, regular, habitual, tradicional2. Estas leis de probabilidade são de validez contestável quando tentamos aplicá-las a fenômenos sociais tais como a «opinião coletiva», que é essencialmente flutuante, ou, sobretudo, aos sinais, símbolos, valores, ideias, condutas inovadoras, mentalidade coletiva, etc.
f) Finalmente, o que outrora se chamava lei de evolução deve substituir-se pelo conceito de regularidades tendenciais, que só se aplicam à escala macrossociológica, quer dizer, cuja validez é estritamente limitada aos tipos descontínuos dos agrupamentos e da sociedade global. Por exemplo, em cada tipo de sociedade global podem observar-se múltiplas regularidades tendenciais encaminhando-se para direções diversas. O estudo destas só pode, aliás, dar resultados relativamente precisos se começarmos por pesquisar os aspectos diferenciados dessas regularidades, tomando como base, por exemplo, a técnica, a demografia, a vida econômica, a vida jurídica, a vida religiosa, a vida moral, a psicologia coletiva, etc. Em suma, e para concluir, o centro de interesse da sociologia do século XIX, isto é, a procura das «leis sociológicas» que regessem o funcionamento e a marcha geral da sociedade, não é o da sociologia dos nossos dias. As investigações pormenorizadas a que se consagra não conduzem nem se propõem conduzir às «leis causais» ou às «leis de desenvolvimento» [São exemplos: a «lei dos três estados», de Auguste Comte, e a da «integração por diferenciação», de Herbert Spencer.]. O conceito de tipo social qualitativo e descontínuo eliminou em sociologia o conceito de lei [Para Gurvitch, o método característico da sociologia é o método tipológico, tão distinto do método mais ou menos generalizante das ciências naturais como do método individualizante (próprio da história, da geografia e da etnografia) e do método sistematizante (próprio de certas ciências sociais particulares: economia politica, direito no sentido técnico, gramática, etc.).].
Georges Gurvitch, La Vocation Actuelle de la Sociologie, 1950 pp. 43-48.
O caráter estatístico [das leis sociológicas] permite eliminar inteiramente o famoso conflito teórico do determinismo científico e da liberdade humana. Formular leis sociológicas supõe a existência de um determinismo social: não está este determinismo em contradição com a liberdade humana? Veio a reconhecer-se que este problema é o tipo acabado do falso problema. A liberdade é respeitante à atitude de cada indivíduo: as leis sociológicas só exprimem relações entre conjuntos de indivíduos. Elas assentam indubitavelmente no fato de que no interior de um conjunto as atitudes assumidas pelos elementos componentes são determinadas em bloco, globalmente, estatisticamente. Isto quer dizer simplesmente que é possível prever a proporção de pessoas que hão-de suportar o peso de certos fatores, a daquelas que hão-de suportar o peso de outros, etc. Individualmente, cada um continua livre de agir como entender. O fato de 10% dos Parisienses tomarem o comboio no primeiro dia de Agosto não obriga ninguém a precipitar-se para a estação de caminho de ferro. Nenhuma pessoa competente invoca o problema da liberdade humana para criticar o conceito de lei sociológica: mas não é questão resolvida na opinião do homem comum, pelo menos no domínio do inconsciente. Assim se explica muita reticência a respeito das ciências sociais.
Maurice Duverger, Méthodes des Sciences Sociales, 1961, pp. 328-329.