E ela o é igualmente na «constituição» dos outros, na sua realização em «intersubjetividade». Está aí uma última e essencial «possibilidade» da reflexão que Husserl expõe em particular em Logique (pp. 317 e segs.) e na quinta Méditation Cartésienne.
Problema irritante, paradoxal, que parece contradizer o princípio da redução egológica, ou perder o seu objeto («encontra-se o outro, não se o constitui», escreverá Sartre). Contudo, em Husserl, a constituição do outro, de uma subjetividade estranha, como tal, não é senão a elaboração de um método que em nenhum momento se nega. O outro é constituído: isto significa que, requerido pela compreensão da objectividade do mundo, de um mundo «para nós todos» (Logique p. 317), não é nem uma simples factualidade contingente nem uma exigência puramente teórica. Esta constituição, que faz apelo a uma «redução na redução» (Méditation V), liberta na evidência uma intencionalidade específica cuja atualidade se enraíza na pré-constituição de uma síntese passiva, de associações primeiras que são sempre, nos primeiros passos da reflexão fenomenológica, as mais profundamente dissimuladas porque as mais essenciais. O outro é constituído num emparelhamento analógico, desenvolvendo-se contemporaneamente à constituição do meu próprio eu psicofísico, da minha corporeidade. Aparece no meu enquadramento imediato, pelo seu próprio corpo, pelos seus traços, numa «natureza primordial» ainda não objectivada. A sua presença estrutura o meu espaço. Já está «acolá» quando eu estou «aqui», modo particular de apresentação da «própria coisa», que Husserl designa «apresentação», para diferenciar a transcendência que ela indica da coisa física. É a este corpo de outrem que eu atribuo «o alter ego» na sua dupla face empírica e transcendental. E como se trata precisamente de uma experiência originária de que a redução é o garante, apenas a constituição pode fundar a indubitabilidade desta presença. A comunidade espiritual e as suas formações ideais, culturais, científicas, etc, estão sempre a constituir-se sobre esta base da apresentação direta que «dá» simultaneamente a alteridade dos outros e a sua existência como sujeitos. A constituição do outro «em mim» esclarece pois aquilo que já o ego que reflete aprende nele, mesmo no momento em que leva bastante longe a revelação do que é esta subjetividade que não é mais o ser psicológico, «no momento portanto em que se revela que ‘subjetividade transcendental’ não significa somente ‘eu como eu próprio transcendental’ tomado concretamente na minha própria vida de consciência transcendental, mas significa, além disso, os co-sujeitos que, como transcendentais, se revelam na comunidade transcendental do nós» (Postface). [Schérer]