A este admirável parentesco com os espíritos puros, ajunta-se, para a alma do homem, um parentesco mais surpreendente ainda, o qual o doutor cristão não podia negligenciar: “Façamos o homem à nossa imagem e à nossa semelhança”, havia declarado o Criador (Gên. 1, 26). Toda a psicologia de um S. Agostinho e, depois dele, toda a da Idade Média ver-se-á iluminada por esta palavra da narração sagrada. Um São Boaventura que, em toda a parte, procura encontrar marcas ou vestígios de Deus, comprazer-se-á aqui de maneira toda particular. Com esta nova luz deixamos evidentemente o estudo puramente racional da alma pelo plano da fé, mas nos nossos mestres há implicação contínua das duas perspectivas e só podemos dar uma ideia justa de seu pensamento se evocarmos estes horizontes superiores (Cf. sobre esta questão: Ia Pa, q. 93) .
O que se deve entender, antes de tudo, por esta expressão imagem? Uma imagem não é uma simples semelhança: dois objetos podem se assemelhar sem que um seja, propriamente falando, a imagem do outro; para isto, é preciso acrescentar que nesta “processão” deve-se realizar, não uma semelhança longínqua, mas específica, um verdadeiro parentesco de natureza. Assim, todas as criaturas procedem de Deus e, por este fato, trazem dele algumas marcas que não podem simplesmente ser chamadas suas imagens. Só as criaturas intelectuais merecem este título; abaixo, só se encontram vestígios de Deus.
Se considerarmos melhor, veremos que se encontra na criatura inteligente a imagem de Deus em dois graus de profundidade, conforme exprima somente, em sua unidade, a natureza do Ser supremo, ou exprima a Trindade de suas pessoas. Já pelo simples fato de ter uma vida intelectiva, a alma espiritual pode ser chamada a imagem de Deus. Mas, pelo fato de nela se notar uma certa “processão” de um verbo mental segundo a inteligência e uma certa “processão” de amor, segundo a vontade, pode-se igualmente falar de uma imagem da Trindade das Pessoas, distinguindo-se estas em Deus conforme as relações do Verbo com Aquele que diz, e do Espírito com um e outro destes termos.
Sobre este capítulo da alma como a imagem da Trindade, Tomás de Aquino encontrava, para se inspirar, as sutis mas penetrantes análises da alma do De Trinitate de S. Agostinho. Este, para poupar a seu leitor a consideração direta dos mistérios de Deus, procurava analogias em nosso mundo espiritual. Assim, conforme se considere a alma no nível das potências ou hábitos, ou no nível dos atos, encontra-se uma primeira (mens, notitia, amor), ou uma segunda (memoria, intelligentia, voluntas) imagem da Trindade em nós. Indiquemos que na primeira destas aproximações, “mens” designa a potência, sendo “notitia” e “amor” os hábitos que a dispõem para seu ato. Na segunda aproximação, que é mais perfeita, “memoria” significa o conhecimento habitual da alma, “intelligentia” e “voluntas” os atos que dela procedem (cf. De Veritate, q. 10, a. 3).
A significação destas imagens do Deus Uno e Trino, escondidas no fundo da alma, será percebida por ela somente sob a luz da fé, ou segundo as leis de uma psicologia sobrenatural. E assim ultrapassamos os limites de nossa presente pesquisa. Mas era inevitável ir até aos umbrais disto que o Doutor angélico considerava como a melhor parte de nossa vida, a da alma imagem de Deus em sua intimidade e capaz, por isso mesmo, de viver sua vida. [Gardeil]