ideia medieval de ser

Ens per nihil notius explicatur’, dizia Duns Scot. O ser não pode ser explicado por nenhuma noção. Em primeiro lugar, não pode ser definido, pois como já vimos na Lógica, definir é reduzir a outro. Define-se algo ao opor outro, situando-o em algo, que lhe é mais geral, e que o inclui. Ora, o ser é incluso apenas em si mesmo e não em outro, pois do contrário este outro seria ser, e estaria apenas contendo a si mesmo. Definir é marcar limites (definire). O que conceituarmos de ser não pode opor-se a outro, nem ser incluído em conceitos mais gerais, mais simples, mais primitivos, pois o ser não começa a ser de outro que não é, pois se esse outro pudesse extrair de si o ser, o seu poder já apontaria o ser.

Só podemos opor ao ser o conceito de nada. Mas nada não se ob põe, como algo que é, pois excluímos dele o ser, portanto o nada não pode opor-se. Nada seria apenas uma recusa de ser, seria um afirmar, que já exigiria o ser, porque, por si mesmo, o nada não pode afirmar-se por lhe faltar ser, e impõe-se, previamente, um ser para afirmá-lo. Portanto o ser sempre antecederia o nada. Ora, o ser é, portanto, a nossa própria experiência, é já um garantir dessa anterioridade eterna do ser que sempre é, a sua eternalidade, que já podemos estabelecer, embora muito tenhamos de percorrer para precisar, futuramente, a sua conceituação.

Vemos, desde logo, que a ideia de ser não inclui em si uma contradição, pois a sua primordialidade se impõe, quer partamos da nossa experiência, quer partamos da especulação.

A ideia de ser, que vamos precisando cada vez mais, não implica nada que se lhe oponha para afirmar-se, e pode ser afirmada extra intellectum et in intellectu, pois o ser o compreendemos fora do nosso pensamento e no nosso pensamento.

E portanto ainda, a ideia de ser, que é comum a todo ente, a tudo quanto há, a tudo quanto existe, a tudo quanto sucede, a tudo quanto é alguma coisa, porque tudo é ser, o ser que há em toda coisa, e que é toda coisa, não inclui contradição, enquanto tal, porque a ideia de ser não inclui contradição, o que não é ser.

Portanto, como bem dizia Duns Scot: “Ergo ens, hoc est, cui non repugnat esse” é ser o que, ao qual, não repugna ser.

A indefinibilidade do ser decorre, portanto, claramente das palavras que alinhamos acima, pela impossibilidade de situá-lo em algo mais geral (num gênero próximo). E se a ideia de ser não pode por sua vez ser incluída em outra, inclui todas as modalidades de ser.

O ser é, portanto, o primam notam, o que é primeiramente notado, e é per se notam, e é por si notado, pois não o é pelo nada o conceito mais claro, mais límpido e mais simples que nos surge, desde a primeira à última experiência. Não é explicado por outro, mas por si mesmo se explica; fonte de toda a experiência é também seu fundamento. É ele explicável por si mesmo, pois, se tentássemos explicá-lo, teríamos sempre de recorrer ao ser para afirmá-lo, pois é ele o que explica tudo, pois não há conceito que não o inclua, seja de que espécie for, inclusive quando tentamos conceituar o nada, em cuja conceituação não podemos deixar de partir do ser para tentar a recusa, que é ainda uma afirmação e que o implica.

Ser é, deste modo, um conceito simpliciter simplex, um conceito simplesmente simples, (absoluto), pois não precisa de outro, senão de si mesmo e apenas de si mesmo, para afirmar-se (ab – solutum).

O ente é o que tem ser (ens est habens esse), o que é, id quod est. Ser é o quid est do ente.

Tenho um objeto ante os meus olhos: é um livro. Nele, desde logo, capto o que me permite classificá-lo, situá-lo no conceito livro, a este livro. Este livro é um ser, um ente, mas dele posso dizer id, quo res est id, aquilo que esta coisa é, a sua essência, ser livro, e esta coisa que existe, id, quod res exsistit, isto que se dá extra causas et extra nihilum, isto que se dá fora de suas causas e fora do nada, a sua existência, o fato de ser.

E desde logo percebo que tanto a essência deste livro como a sua existência não se excluem do ser, mas estão incluídos no ser, são modos de ser.

E este livro, pego-o nas minhas mãos; leio-o. Ele pode ser aberto, lido, manuseado, pesado, sentido. Ele pode padecer todas essas determinações que lhe dou. Ele pode sofrer, tem a potência de ser lido, manuseado, etc., de sofrer a ação que sobre ele exerço. E desde logo posso desdobrar, nele, o que nele é ato e o que nele é potência, e tanto ato como potência não são algo que excluo do ser, mas algo que incluo no ser, modos de ser.

Para todos eles, o que é comum é o ser, predicatus communissimum et simplicissimum et essentiale respectu omnium, predicado comuníssimo, de todos, e simplicíssimo, e essencial de tudo.

E quer eu diga que uma coisa é, que uma coisa existe, que uma coisa sofre uma determinação, ou realiza uma determinação, que é real, que é alguma coisa, que é um existente, seja como for que eu diga, estou sempre predicando ser.

E não encerro o ser apenas neste objeto, mas naquele também. Não só a um ser individual, mas também a uma particularidade, que um grupo de objetos participa e, também, à universalidade de todos os entes. Portanto, vê-se que o conceito de ser não é imanente apenas a este ente, mas vai além dele, transcende-o. O conceito de ser é um conceito transcendental, pois posso predicá-lo a uma singularidade, a uma particularidade a uma universalidade, e a tudo, porque a tudo transcende, a todos os entes.

E é em sua transcendentalidade, em sua super-transcendentalidade, e em sua imanência, que o ser é objeto da Ontologia, objeto formal na sua transcendentalidade, e material na sua imanência.

É um conceito de existência necessária, pois como compreender um ser sem o ser?

É um conceito de uma existência eterna, pois como conceber o existir do ser sem a sua primordialidade existencial e eterna?

É um conceito de uma imutabilidade eterna, pois como conceber o ser, deixando de ser, tornando-se nada, se ele não contém nada mas ser?

Portanto, a heterogeneidade de todos os modos de ser é um apontar constante, um símbolo uni-significativo do ser transcendentalmente imutável.

O ser é o tò ti èn einai de Aristóteles, o ser do que é.

É o ser, portanto, o que é firme, estável, fixo. [MFS]