histórico

Há primeiro uma ambiguidade no termo história que designa tanto a realidade histórica como a ciência histórica. Essa ambiguidade exprime um equívoco essencial, a saber que o sujeito da ciência histórica é também um ser histórico. Compreender-se-á logo que a interrogação “como é possível uma ciência histórica?” que nos interessa está estreitamente ligada à interrogação: “o ser histórico deve e pode transcender sua natureza de ser histórico para apreender a realidade histórica na qualidade de objeto de ciência?” Se denominarmos historicidade a essa natureza, surge uma segunda questão: a historicidade do historiador é comparável com uma consideração da história de acordo com as condições das ciências?

É necessário antes de mais nada interrogarmo-nos acerca da própria consciência de história; como o objeto História surge à consciência? Não pode provir da experiência natural que se refere ao desenrolar no tempo; não é porque o sujeito se encontra na história” que ele é temporal, mas “se ele só existe e só pode existir historicamente é que no fundo de seu ser ele é temporal”. Que significaria, com efeito, uma história na qual o sujeito se encontraria, um objeto histórico em si mesmo? Tomemos de Heidegger o exemplo de um móvel antigo, coisa histórica. O móvel’ é coisa histórica não só porque é um objeto eventual da ciência histórica mas em si mesmo. Mas o que é, em si, o fato histórico? Será porque ele é ainda de algum modo aquilo que era? Nem isso, pois ele mudou, se degradou etc. . . Será então porque ele é “velho”, fora de uso? Mas ele pode não o ser, ainda que seja móvel antigo. O que então é passado nesse móvel? É — responde Heidegger, o “mundo” de que fazia parte; assim essa coisa subsiste ainda agora e por isso ela está presente e só pode estar presente; mas enquanto objeto que pertence a um mundo passado, esta coisa presente é passada. Por conseguinte, o objeto é realmente histórico em si mesmo, mas secundariamente apenas; ele é histórico apenas porque sua proveniência se deve a uma humanidade, a uma subjetividade que foi presente. Mas essa subjetividade, por sua vez, que significa? Que significa para ela o fato de ter estado presente?

Eis-nos, portanto de volta do histórico secundário a um histórico primário ou melhor originário. Se a condição do histórico do móvel não está no móvel mas no histórico do mundo humano em que esse móvel se encontrava, que condições nos garantem que esse histórico seja originário? Dizer que a consciência é histórica não é apenas dizer que existe algo como o tempo para ela mas que ela é tempo. Ora, a consciência é sempre consciência de alguma coisa e uma elucidação tanto psicológica como fenomenológica da consciência vai revelar uma série infinita de intencionalidades, isto é, de consciências de. Neste sentido a consciência é um fluxo de vivências (Erlehnisse) que estão todos no presente. Do lado objetivo, não há qualquer garantia de continuidade histórica; mas em direção do pólo subjetivo qual a condição de possibilidade dessa onda unitária de vivências? “Apesar de estar entrelaçado deste modo especial com todas as vivências o eu que as vive não é, entretanto, de modo algum algo que possa ser considerado por si e tratado como um objeto próprio de estudo. Se fazemos abstração de suas maneiras de se relacionar e comportar. . ., não possui nenhum conteúdo que se possa explicitar: ele é em si e por si indescritível: eu puro e nada mais” (Husserl, Ideen I, 271). O problema ao qual a elaboração do problema da ciência histórica conduz é pois, atualmente, o seguinte: já que a História não pode ser dada ao sujeito pelo objeto, é por que o sujeito é ele mesmo histórico, não por acidente mas originariamente. Como, isto posto, a historicidade do sujeito é compatível com sua unidade e sua totalidade? Esse problema da unidade de uma sucessão é igualmente válido para a história universal.

Uma fórmula célebre de Hume pode esclarecer melhor esse problema: “O sujeito nada mais é que uma série de estados que se pensa a si mesmo”. Estamos novamente diante da série dos Erlehnisse. A unidade dessa série seria dada por um ato de pensamento imanente a essa série; mas esse ato, como observa Husserl, se junta à serie como um Erlehnisse suplementar para o qual seria preciso uma nova tomada sintética da série, isto é, uma nova vivência: estaremos pois, primeiramente, diante de uma série inacabada, e cuja unidade sobretudo será sempre discutível. Ora, a unidade do eu não é discutível. “Não ganhamos nada em transportar o tempo das coisas em nós, se renovamos “na consciência” o erro de defini-lo como uma sucessão de agora” (Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, 472); nisto é que a fenomenologia procura se desligar do bergsonismo. É claro que o passado é como noesis um “agora” ao mesmo tempo que um “não mais” como noema,- o futuro um “agora” ao mesmo tempo que um “não ainda” e, por conseguinte, não se deve dizer que o tempo se escoa na consciência, pois, ao contrário, é a consciência que, a partir de seu agora, desdobra ou constitui o tempo. Poder-se-ia dizer que a consciência intencionaliza agora o isto de que ela é consciência segundo o modo do não mais, ou segundo o modo do ainda, ou finalmente o modo da presença.

Mas a consciência seria então contemporânea de todos os tempos, se é a partir de seu agora que ela desdobra o tempo: uma consciência constitutiva do tempo seria intemporal. A fim de evitar a imanência, pouco satisfatória, da consciência no tempo, caímos numa imanência do tempo na consciência, isto é, numa transcendência da consciência ao tempo que deixa inexplicada a temporalidade dessa consciência. Em certo sentido não avançamos um passo desde a posição do problema: a consciência e especialmente a consciência histórica, ao mesmo tempo que envolve o tempo é envolvido por ele. Mas, em outro sentido elaboramos o problema sem prever a solução, preocupados de colocá-lo corretamente; o tempo, e por conseguinte a história, não é apreensível em si, ele deve ser devolvido à consciência que se tem da história; a relação imanente dessa consciência e sua história não pode ser compreendida nem horizontalmente como série que se desenvolve, pois não se tira uma unidade de uma multiplicidade, nem verticalmente como consciência transcendental que postula a história, pois de uma unidade intemporal não se obtém uma continuidade temporal. [Lyotard]