Depois de haver redigido várias gramáticas (grega, latina, espanhola), um professor das «Petites Écoles» de Port-Royal des Champs, Claude Lancelot, escreveu em 1660, em colaboração com Antoine Arnauld, uma Grammaire Générale et Raisonnée, que posteriormente muitas vezes se designou de Gramática de Port-Royal. A gramática geral visa enunciar certos princípios a que todas as línguas obedecem, e que dão a explicação profunda dos usos; trata-se, pois, de definir a linguagem de que as línguas particulares são casos particulares. O exemplo de Port-Royal foi seguido por muitos gramáticos do século XVII, sobretudo franceses, que são de opinião de que, se nos não apoiarmos numa gramática geral, a aprendizagem das línguas particulares se reduz a um exercício meramente mecânico, onde só entram em jogo a memória e o hábito.
Se todas as línguas têm um fundamento comum, é porque todas elas têm como objectivo permitir aos homens «significarem-se», darem a conhecer uns aos outros os seus pensamentos. Ora, Lancelot e Arnauld admitem implicitamente, e certos gramáticos posteriores (como Beauzée) afirmam explicitamente, que a comunicação do pensamento pela palavra exige que esta seja uma espécie de «reprodução», de «imitação», do pensamento. Quando eles afirmam que a língua tem como função a representação do pensamento, esta palavra deve pois ser tomada no seu sentido mais forte. Não se trata apenas de dizer que a palavra é signo, mas também que é espelho, e que comporta uma analogia interna com o conteúdo que veicula. Porque é que, agora, estas palavras que «nada têm de parecido com o que se passa no nosso espírito», podem, no entanto, imitar «os diversos movimentos da nossa alma» ?
Para os autores de gramáticas gerais, não se trata de procurar na materialidade da palavra uma imitação da coisa ou da ideia (embora a crença no valor imitativo dos sons da linguagem se encontre em todas as épocas da reflexão linguística, e, mesmo no século XVII, em certos textos de Leibniz). Para eles, só a organização das palavras no enunciado tem um poder representativo. Mas como é possível que um agregado de palavras separadas possa representar um pensamento cuja característica primeira é a «indivisibilidade» (termo usado por Beauzée) ? Será que a fragmentação imposta pela natureza material da palavra não contradiz a unidade essencial do espírito? Para responder a esta questão (a mesma que no século XIX, guia a reflexão de Humboldt sobre a expressão linguística da relação), deve notar-se que existe uma análise do pensamento que, ao decompô-lo, respeita a sua unidade: a análise efectuada pelos lógicos. Ao distinguir numa proposição um sujeito e um predicada (aquilo a respeito do qual se afirma alguma coisa, e aquilo que dele se afirma), não se quebra a sua unidade, uma vez que cada um destes termos deve definir-se em relação ao outro, uma vez que o sujeito apenas é sujeito em relação a uma predicação possível, e que o predicado não se basta a si mesmo, mas comporta uma «ideia confusa» do sujeito em relação ao qual ele é afirmado. Por conseguinte, a palavra poderá deixar transparecer a indivisibilidade do ato intelectual, se a fragmentação em palavras reproduzir a análise lógica do pensamento. É por isso que «a arte de analisar o pensamento é o principal fundamento da arte de falar, ou, por outras palavras, é por isso que uma lógica sã é o fundamento da arte da gramática» (Beauzée). Da ideia de que a linguagem é representação passa-se assim à ideia de que ela é representação do pensamento lógico. Desde já se compreende que possa haver uma gramática «geral»: como, nessa época, quase não se põe em dúvida que a lógica seja universal, parece natural que haja princípios, também universais, que todas as línguas devem respeitar quando se esforçam por tornar visível, através das coações da comunicação escrita ou oral, a estrutura do pensamento lógico. Compreende-se também que o conhecimento desses princípios possa obter-se de maneira «racional» (e não indutiva), a partir duma reflexão sobre as operações lógicas do espírito e sobre as necessidades da comunicação. Vê-se, por último, que esta gramática geral e racional permite, por sua vez, explicar a razão dos usos observados nas diferentes línguas: trata-se, pois, de «aplicar aos princípios imutáveis e gerais da palavra pronunciada ou escrita, as instituições arbitrárias e usuais» das línguas particulares.
Alguns exemplos
As principais categorias de palavras correspondem aos momentos fundamentais do pensamento lógico. Consistindo o juízo em atribuir uma propriedade (predicado) a uma coisa, as línguas comportam palavras para designar as coisas (substantivos), para designar as propriedades (adjectivos) e para designar o próprio ato de atribuição (o verbo ser; os outros verbos representam, segundo Port-Royal, um amálgama do verbo ser com um adjectivo: «o cão corre» = «o cão é corredor»). Outra categorias, ligadas, também elas, ao exercício do pensamento lógico, são determinadas, além disso, pelas condições da comunicação. Por conseguinte, a impossibilidade de ter um nome para cada coisa impõe o recurso a nomes comuns cuja extensão é depois limitada por artigos ou por demonstrativos. Enunciar-se-ão mesmo, combinando princípios lógicos com exigências de comunicação, certas regras apresentadas como universais. Por exemplo, o acordo entre o nome e o adjectivo que o determina, acordo necessário à clareza da comunicação (permite saber de que nome depende o adjectivo) deve ser uma concordância (identidade do número, do gênero e do caso) porque, segundo a sua natureza lógica, o adjectivo e o nome se referem a uma só e mesma coisa. (Port-Royal vai ao ponto de”explicar o motivo do acordo do particípio em francês.) Mais ainda, há uma ordem das palavras (a que coloca o nome antes do adjectivo epíteto, e o sujeito antes do verbo) que é natural e universal, por que, para compreender a atribuição duma propriedade a um objeto, é preciso primeiro representar-se o objeto: só depois é possível afirmar algo sobre ele.
Esta última regra — na medida em que os contra-exemplos surgem imediatamente (o latim e o alemão quase não respeitam a «ordem natural») — mostra que é indispensável a todas as gramáticas gerais uma teoria das figuras. Na época, concebe-se uma figura de retórica como uma maneira de falar artificial e imprópria, substituída voluntariamente, por razões de elegância ou de expressividade, por uma maneira de falar natural, que deve ser restabelecida para que se compreenda o significado da frase. Segundo as gramáticas gerais, encontram-se essas figuras não só na literatura mas também na própria língua: elas assentam no facto de que a língua, primitivamente destinada a representar o pensamento lógico, se encontra na verdade ao serviço das paixões. Estas impõem, por exemplo, abreviações (subentendem-se os elementos logicamente necessários, mas afetivamente neutros), e, muito frequentemente, uma inversão da ordem natural (põe-se à cabeça não o sujeito lógico, mas a palavra importante). Em todos estes casos, as palavras subentendidas e a ordem natural haviam primeiramente estado presentes no espírito do locutor, e devem ser restabelecidas pelo ouvinte (o romano que ouvia Venit Petrus era obrigado, para compreender, a reconstruir em si mesmo Petrus venit). É por isso que o latim e o alemão se chamam línguas transpositivas: elas invertem uma ordem primeiramente reconhecida. A existência de figuras, em vez de contradizer os princípios gerais, constitui antes a sua confirmação: elas não substituem as regras, mas sobrepõem-se a elas.
Qual a importância histórica da gramática geral? Primeiro que tudo, ela marca, intencionalmente pelo menos, o fim do privilégio reconhecido, nos séculos precedentes, à gramática latina, que tendia a apresentar-se como modelo para qualquer gramática: a gramática geral é tanto latina como francesa ou alemã, mas transcende todas as línguas. Compreende-se que no século XVII se tenha tornado um lugar-comum (repetido em muitos artigos linguísticos da Enciclopédia) condenar os gramáticos que só sabem ver uma língua através de uma outra (ou, como dirá O. Jespersen no século XX, que falam duma língua «com o olhar invejoso» noutra). Por uma lado, a gramática geral evita o dilema, que até então parecia insuperável, da gramática meramente filosófica e da gramática meramente empírica. Os inúmeros tratados De modis significandi na Idade Média consagravam-se a uma reflexão geral sobre o acto de significar. Por outro lado, a gramática, tal como a entendia Vaugelas, não passava dum registo dos usos, ou antes dos «bons usos», julgando-se a qualidade do uso sobretudo pela qualidade do utente. A gramática geral procura dar uma explicação dos usos particulares a partir de regras gerais deduzidas. Se essas regras podem aspirar a um tal poder explicativo, é porque, apesar de fundadas na lógica, não se contentam com repeti-la : exprimem a sua transparência possível através das condições materiais da comunicação humana. [DCL]