Então conclui-se que são inatas. Inatas? Por que não? Explicaremos o que queremos dizer quando dizemos que as verdades de razão são inatas. Por inatas não queremos dizer que as crianças nascem no mundo sabendo geometria analítica. Não; isto não. Inato não quer dizer que estejam totalmente impressas no nosso intelecto, no nosso , espírito, na nossa alma, estas verdades; quer dizer que estão virtualmente impressas. Inato quer dizer, pois, germinativamente, seminalmente; como numa semente ou num germe encontram-se estas ideias no espírito, constituem o próprio espírito. No curso da vida, do espírito, essas ideias se desenvolvem, se explicitam, se formulam, se separam umas das outras; estabelecem-se e formam-se em sua relação. A matemática surge, a matemática se aprende. Mas, que é aprender matemática? Aprender matemática não é algo que se pareça em nada à comunicação que um homem possa fazer a outro de uma verdade de fato. Se alguém vem e me diz: “O roseiral do seu jardim floresceu”, este é um novo conhecimento de fato que entra em mim. Porém, não se aprende assim matemáticas. Aprender matemáticas consiste em que as matemáticas latentes que estão em cada um saiam à superfície, que cada um descubra as matemáticas. E o próprio Leibniz, nos seus Novos ensaios, lembra a teoria da reminiscência, de Platão, aquele diálogo em que Sócrates chama a um escravo jovem, Mênon, para demonstrar a seus ouvintes que esse rapaz também sabia matemáticas sem as ter aprendido, porque as matemáticas surgem, nascem no espírito por puro desenvolvimento dos germes racionais que estão nele.
Neste sentido seminal, genético, germinativo, pode dizer-se que as verdades de razão são inatas. Mas, naturalmente, não no sentido ridículo de pensar que um ignorante, que um menino já sabe geometria. Porém, qualquer homem pode vir a conhecê-la e não precisa para isso da experiência, mas somente do desenvolvimento desses germes já existentes. Expressa isto Leibniz de uma maneira perfeita, clara, quando propõe que ao lema fundamental dos empiristas, ao velho adágio latino, aristotélico de Nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu (ou seja: “nada há no entendimento que não tenha estado antes nos sentidos”), se acrescente: Nisi intellectus ipse. Nada há no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos, a não ser o próprio intelecto com suas leis, com seus germes, com todas essas possibilidades de desenvolvimento que não necessitam mais que desenvolver-se no contacto com a experiência.
Em suma: a teoria de Leibniz sobre a origem da verdade de razão descobre aquilo que, a partir dele, e sobretudo em Kant, vamos chamar a priori. A priori é um termo latino que quer dizer, nesses arrazoados filosóficos, independente da experiência. Diremos, pois, que as verdades de razão são a priori, independentes da experiência, são prévias à experiência, ou, melhor dito, alheias a elas, se desenvolvem florescendo dos germes que há em nosso espírito, sem necessidade de ter sido impressas em nós pela experiência, a qual não poderia imprimi-las, porque aquilo que imprime em nós são os fatos, e os fatos são sempre contingentes, nunca necessários.
Depois das verdades de razão vem o estudo das verdades de fato. As verdades de fato sim, são oriundas da experiência; não têm outra origem; são, com efeito, produzidas pelas experiências; estão impressas em nós por meio da percepção sensível. São verdades como essas que dizíamos antes: essa lâmpada é verde. Essas verdades, porém, que são, com efeito, contingentes, que não são necessárias, nem por isso carecem de certa objetividade; são objetivas, enunciam também aquilo que o objeto é, dizem-nos a consistência do objeto. Porém isso que o objeto é, essa consistência do objeto, que é, com efeito, o conteúdo das verdades de fato, constitui um conhecimento de segunda ordem, um conhecimento inferior. O ideal do conhecimento é o conhecimento necessário, o conhecimento que nos fornecem as verdades de razão. Mas as de fato não deixam de ter certa objetividade, porque, com efeito, assim são as coisas. Esta lâmpada é com efeito, verde; há, pois, certa objetividade nesse conhecimento. Donde vem a objetividade a este conhecimento das verdades de fato? Vem-lhe de que todas as verdades de fato se sustentam em um princípio de razão. As verdades de fato têm uma base no princípio de razão suficiente. Uma verdade de fato está fundada enquanto podemos procurar e dar razão de por que é assim. Esta lâmpada é verde, mas poderia ser rosa. Se é verde, é por algo; é porque quem a fez, a fez verde; e a fez verde por algo: porque lho mandaram; e lho mandaram por algo: porque o freguês o pedira; e o freguês o pedira por algo, e assim sucessivamente. De modo que se considerarmos que cada uma das verdades de fato está fundada em um princípio de razão suficiente, e se prolongarmos a série de razões suficientes a cada uma das causas das verdades de fato até bastante longe, cada prolongamento será mais uma garantia da objetividade dessas verdades de fato. O ideal seria chegar a uma causa que não necessitasse por seu turno da aplicação do princípio de razão suficiente, mas que fosse uma causa que constituísse já, dentro de si, a necessidade; quer dizer^ que fosse ao mesmo tempo um fato e uma verdade de razão. Tal causa é Deus. Por conseguinte, em Deus não há verdades de razão e verdades de fato: todas são verdades de razão. Em Deus desapareceria a distinção entre verdades de fato e verdades de razão, porque como Deus conhece atualmente toda a série infinita de razões suficientes que fizeram que cada coisa seja aquilo que é, como Deus conhece toda essa série de razões de ser como são as coisas, nenhum juízo é nele assertórico e puramente contingente, mas é necessário. Como ele conhece toda a série infinita atualmente, para ele o contingente deixa de sê-lo e se transforma em necessário. A verdade de fato deixa de ser verdade de fato e se transforma em verdade de razão. Então surge diante de nós um conhecimento real, puro, um ideal de conhecimento, que consiste em aproximar-nos o mais possível desse conhecimento divino, que consiste em cumular tal quantidade de séries de conhecimentos nos princípios de razão suficiente de cada coisa, que a coisa esteja apoiada cada vez mais em razões suficientes e vá devindo cada vez mais uma verdade necessária, uma verdade de razão, em lugar de ser uma verdade de fato. [Morente]