Gaia

VIDE Terra

Onde está a Terra? Unicamente sob os nossos pés, na imagem que a cosmografia nos oferece? Ou a Terra como designação do ctonismo é uma experiência ultrageométrica, a experiência da materialidade noturna e germinante, a experiência profusa das formas do terrestre, do drama de um princípio divino? É a imemorial Gaia em toda a sua potência mitológica, é a protoforma do feminino. Esse o segredo recôndito do simbolismo e do símbolo, no qual uma coisa ou processo não só pode traduzir ou aludir a outra coisa, mas, da maneira mais exata, uma coisa é a outra. Acontece que na visão simbólica do mundo as antigas coisas da visão científico-manipuladora transformam-se em princípios errático-vitais, em sua produtividade inabalável. A Terra que nossos olhos nos revelam, a Terra como conteúdo lógico-significante é uma mera expressão estático-intelectual, uma fixação de um grande e mítico drama que só a experiência simbólica pode revelar-nos. O mesmo processo que está em atuação na externalidade fixa da Terra pode atuar e atua na alma do homem quando esse, fascinado pela Deusa, canta e dança, põe em poemas e movimentos a sua reverência religiosa. No poema está o mito da Terra, isto é, está na Terra, com igual direito que na dança, ou na representação fixa sob os nossos pés. [Martin Heidegger, Unterwegs zur Sprache. Berlim, Nesks Verlag, 1959, p. 205. “Nos dialetos manifesta-se de forma variável o panorama ou ainda a Terra. Mas a boca não é simplesmente uma espécie de órgão do corpo representado como organismo, mas tanto o corpo como a boca pertencem à Terra e mediante eles recebemos uma residência na Terra.”] Se tudo está em tudo, não estaríamos repetindo a veneranda doutrina das homeomerias de Anaxágoras? Em cada objeto estariam as sementes de todos os outros. Não se trata contudo, na filosofia simbólica que estamos desenvolvendo, da presença física e material das coisas, umas nas outras, mas da coalescência de uma hierofania divina em múltiplas representações. As metamorfoses do princípio mítico traduziríam as possibilidades variáveis de manifestação, o existir atópico ou utópico de uma abertura mundial. [VFSTM:161]