O que importa, enfim, dar mais concisão é que espécie de história [47] é contada aqui. Pois se apresenta o freudismo frequentemente como uma história empírica do indivíduo na qual o que lhe advém e irá lhe advir resulta largamente do que lhe aconteceu na infância, de sua relação com o pai, com a mãe, do trauma de seu nascimento etc. O que constitui a ingenuidade de toda explicação desse gênero (como, aliás, da história em geral), é que não faz senão reportar ao passado um problema que se encontra ali intacto e do qual não se avança sequer um passo. “Explicar” o amor de um adulto pelo que tinha por sua mãe é explicar o amor pelo amor. O Pai não torna a ideia de Deus inteligível senão ao que não compreendeu que nessas duas figuras se representa uma mesma estrutura ontológica, precisamente a essência da vida na medida em que não cessa de se fazer a prova de si mesma [s’éprouver soi-même] e assim de fazer a prova de si [faire l’épreuve de soi] como daquilo de que jamais é o fundamento. A situação de desamparo do nascimento só dá conta da angústia de um ser originariamente constituído, em si mesmo, como afetivo e capaz de ser determinado afetivamente.
Foi com a mesma ingenuidade que a genealogia da psicanálise, que exporemos aqui, foi considerada uma espécie de história das doutrinas ou das diversas concepções filosóficas ou científicas que a precederam e da qual ela seria como o resultado previsível. E, na verdade, quando Freud chegou a Paris, uma psicologia do inconsciente, apresentada notadamente como a condição incontornável do fenômeno central da memória, estava espalhada em todos os manuais de filosofia da época. O conceito de inconsciente, que será conjuntamente o de Bergson e de Freud, foi ensinado nas escolas antes que fixassem a sua genial descoberta em seus livros. Mas quando se pôs em evidência essas sequências ideológicas sutis com a satisfação legítima que confere a erudição, não se avançou muito. Não foi compreendida ainda a razão da afirmação crucial de um inconsciente que constitui o ser mais íntimo e mais profundo do homem – a afirmação de um inconsciente psíquico. O fato de que essa afirmação se produziu nos contemporâneos de Descartes como uma objeção inevitável à definição eidética da Psique como fenomenalidade pura, em Leibniz, em Schopenhauer, em Hartmann, em Bergson ou em Freud, ou no manual de filosofia de Rabier, isso apenas diz respeito justamente à história, esse feixe de questões que se pode lhe formular e às quais ela é justamente capaz de responder como “história das ideias”.
Do simples ponto de vista da história, aliás, a formulação do inconsciente psíquico, repetida em circunstâncias diferentes, deveria ter dado o que pensar. Pensar que não se poderia tratar ali, tudo bem considerado, de uma descoberta ocasional ou de uma invenção pontual. Se a designação [48] do inconsciente se refere ao que há de mais profundo em nós e assim ao próprio ser, não antes será este último que a produz e não deixa de produzi-la? Acaso não será a própria vida, em sua invencível retirada do mundo, na medida em que se oculta à fenomenalidade do êxtase na qual se move todo pensamento, que extravia esse pensamento a ponto de fazê-lo declarar que tudo o que não se mostra a ele ou não é suscetível de fazê-lo, tudo o que nunca vem a nós na obstância de um objeto ou de um “em face”, não é senão Inconsciente – o privado em si do poder da manifestação?
Genealogia não é certamente arqueologia. Os desvios historiais pelo efeito dos quais o inconsciente adveio em [venu dans] nosso mundo, e cada dia lhe vem, não podem constituir o objeto de uma simples constatação, muito menos de uma descrição, a das estruturas epistêmicas ou dos horizontes ideológicos que dirigem o pensamento moderno: os referidos desvios procedem, em última análise e de modo cabal, do querer da vida em permanecer em si. É a vida que deixa o campo livre ao aparecer do mundo, enquanto o funda secretamente; é ela que se diz, portanto, ao pensamento – o qual não pode, em nenhum momento, tomá-la na visão de seu ver – como o inconsciente. A construção fantástica desse inconsciente, em conformidade com a imagística [imagérie] científica de uma época, de 1895, por exemplo, os desenvolvimentos transcendentes, os raciocínios especulativos, os encaixes de hipóteses ao infinito, as personagens mais ou menos pitorescas que são engendradas, seus jogos, às vezes, burlescos – nada de tudo isso é tão absurdo como parece. A mitologia freudiana tem a seriedade de todas as mitologias, porquanto elas se elevam desse mesmo Fundo essencial e secreto que somos nós, que é a vida. E é, por isso, que se crê nela sem muita dificuldade e é nela que tão facilmente nos reconhecemos.
Mas como, mais que os outros, de modo mais deliberado em todo caso, o pensamento freudiano pôs em causa os direitos da objetividade e como nele as categorias científicas fulguram sob os pesos das determinações fenomenológicas originárias, pode-se dizer a seu respeito que é também uma espécie de ontologia: na medida em que, longe de ser o único resultado do trabalho da análise, o seu discurso sobre o inconsciente depende, na realidade, das estruturas fundamentais do ser e as expõe do seu modo. Daí que esse discurso não repete somente, sem saber, o da filosofia clássica (o inconsciente da consciência pura, da “consciência transcendental”, a conversão dessa filosofia da consciência em uma filosofia da natureza etc), [49] reproduzindo, assim, as grandes carências do pensamento ocidental: ele vai mais longe, até ao impensado desse pensamento, até ao lugar em que se funde, através de nós, no invisível de nossa noite, a incansável e invencível vinda em si [venue en soi] da vida.
A esses pensamentos da vida, todavia, e embora procedam todos dela, a própria vida permanece indiferente. Reduzir o ser, pelo contrário, ao pensamento que se pode ter dele, inclusive a esse pensamento mais essencial que se lhe une em sua co-pertença e conveniência originária, é puro idealismo. Compreender a psicanálise em sua proveniência historial a partir do ser, não consistirá, pois, de modo algum, em incluí-la neste último como um de seus momentos, uma de suas “figuras” ou de suas “épocas”. Se a nossa relação primitiva com o ser não é uma ek-stasis – e é aqui, no final das contas, o que quer dizer a psicanálise –, se ela não reside no pensamento nem em seus diferentes modos, então não podemos mais entregar-nos inteiramente a esse pensamento, cuja errância, aliás, pouco importa, e o destino do indivíduo não é, de modo algum, o do mundo. Quer seja puramente e simplesmente negada, como na ciência contemporânea que pretende tudo conter em sua visada [visée] objetivista, quer se esforce, pelo contrário, em formar dela um conceito adequado nesta fenomenologia radical da qual se perseguirá aqui a edificação, ou que a sua representação seja lançada no folclore das mitologias, a vida nem por isso deixa de prosseguir sua obra em nós, não cessando de nos dar a nós mesmos no pathos de seu sofrer e de sua embriaguez – ela é a essência eternamente viva da vida. [MHPsique:46-49]