Fénelon

François de Salignac de la Móthe Fénelon, arcebispo de Cambrai, nasceu em 1651 e morreu em 1715. Representa, em certo sentido, uma continuação do pensamento de Bossuet; como ele, realiza essa síntese da tradição filosófica medieval e do cartesianismo, que antes indicamos, e prepara o caminho para uma superação da atitude que vê no pensamento da Idade Média e no da modernidade duas realidades díspares e antagônicas, inconciliáveis. O que em uma dimensão mais profunda e eficaz realizou a mente genial de Leibniz, já estava de certa maneira antecipado nestes pensadores católicos franceses, mais modestos sem dúvida, mas de singular acerto e eficácia.

A rigor, Fénelon vai mais longe que Bossuet e outros teólogos contemporâneos. Não só incorpora a seu pensamento uma série de descobertas cartesianas, por exemplo o dualismo e a apreensão do homem como um ente pensante, como faz seu o método de Descartes: a dúvida universal. E por esta via chega à evidência imediata do eu, que não pode não existir, e a partir dela tenta reconstruir a realidade, para chegar, sobretudo, a Deus. Por outro lado, apela às idéias claras e distintas, e repele tudo o que se lhe apresente como dubitável. A segunda parte de seu Tratado da existência de Deus é inteiramente cartesiana, inclusive em sua forma externa e em seu estilo intelectual.

Não esqueçamos porém que, enquanto Descartes é um filósofo, e talvez ainda demasiado alheio à teologia, Fénelon é um teólogo mais que outra coisa, um teólogo agudo e preciso, homem de seu tempo, que tenciona abordar os problemas sobre o fundo da disciplina tradicional, já constituída, recorrendo porém explicitamente aos pontos de vista de sua época e aos meios intelectuais que a filosofia moderna alcançara.

A obra de Fénelon significa em certo sentido, se é válida a expressão, um ensaio de teologia cartesiana ou, se se quiser, moderna; tentativa cujas conseqüências históricas não são muito visíveis, mas que seria interessante perscrutar e filiar com alguma precisão, e, sobretudo, que importaria colocar talvez com todo rigor, dentro do nível de nosso tempo.

Veja-se Gosselin: Histoire littéraire de Fénelon. [Marías]


Fénelon, François de Salignac (1651-1715)

Filósofo, teólogo, escritor literário e pedagogo. Suas ideias políticas e pedagógicas, assim como sua concepção da oração mística, amor puro, valeram-lhe a oposição tanto da Igreja quanto do Estado.

Descendente da alta nobreza, nasceu no castelo de Fénelon (Périgord). Em 1672, iniciou seus estudos superiores no seminário de São Sulpício de Paris. Ordenado sacerdote, foi destinado à educação das jovens católicas convertidas do protestantismo. O fruto dessa educação dada às jovens é seu primeiro Tratado da educação das jovens (1687). Apesar do tom conservador da obra, não deixam de ser originais suas ideias sobre a educação feminina, assim como suas críticas aos métodos coercitivos de seu tempo. Nesta mesma linha pedagógica, e já como tutor do delfim da França, Fénelon publicou sua obra mais conhecida, As aventuras de Telêmaco (1699), que expressa as ideias políticas básicas do autor. Nos 18 livros das Aventuras, escritos para o delfim, descreve o ideal do soberano humanamente rico, capaz de compreender e guiar seu povo. Os preceitos morais e religiosos estão acompanhados, no curso das aventuras, com os mais variados encontros de homens e deuses, com observações de natureza política e econômica, que dão à obra outros valores, além do pedagógico e do literário. No Exame de consciência sobre os deveres da realeza abre-se aos problemas de natureza ético-política, que mostram a complexa personalidade de Fénelon.

Depois de sua eleição à Academia Francesa (1693) e ao arcebispado de Cambrai (1695), período de máxima popularidade nos círculos oficiais, Fénelon viu-se envolvido numa polêmica que o jogou no isolamento e na oposição tanto da Igreja quanto do Estado. Iniciado na experiência religiosa de Madame Guyon (1688), elaborou e explicou o que na história da filosofia e das ideias religiosas se conhece pela “doutrina do amor puro”. Segundo essa doutrina, é necessário que o espírito se deixe levar livremente pela oração para que alcance um “gosto íntimo”. Então se ama a Deus com um amor puro, que não depende nem da esperança de recompensas nem do temor a castigos. O amor puro chega a não possuir consciência de si, sem que signifique que seja independente da vontade. E fruto de um consentimento, mas se realiza quando a vontade se entrega a Deus sem reservas. Com essa doutrina, Fénelon alinhava-se nas filas do quietismo, junto a Miguel Molinos e outros. Teve a mesma sorte que o aragonês Molinos. Foi denunciado publicamente por Bossuet, e seu livro Explicação das máximas dos santos sobre a vida interior (1697) foi condenado pelo papa. Morreu exilado na sua diocese em 1717.

— De suas ideias filosófico-teológicas informam-nos seus dois últimos livros: Tratado da existência e dos atributos de Dios (1705) e Cartas sobre diversos temas de metafísica e de religião (obra póstuma, 1716). Reúnem os grandes temas da existência de Deus e da liberdade humana e se movem dentro da filosofia de Descartes, Malebranche e, em especial, Bossuet.

BIBLIOGRAFIA: Oeuvres complètes. Paris 1852, 10 vols.; Correspondance de Fénelon, 1972, 3 vols.; E. Carcasonne, Fénelon, l’homme et l’oeuvre, 1946; Pietro Zovatto, Fénelon e il quietismo, 1968. (Santidrián)