Na linguagem abstrata, o que constitui a dificuldade da existência e do existente, longe de ser esclarecido, na verdade jamais se manifesta; justamente porque o pensamento abstrato é sub specie aeterni, realiza-se na abstração do concreto, temporal, do devir da existência, da angústia do homem, situado na existência por um encontro do temporal e do eterno. Se quisermos agora admitir que o pensamento abstrato é o superior, seguir-se-á que a ciência e os pensadores abandonam orgulhosamente a existência e deixam-nos para nós, homens, apenas o pior de suportar. Ocorre porém algo ao próprio pensador abstrato, pois sendo no final de tudo ele também um homem existente, não pode deixar de se ter distraído de alguma forma.
Interrogar a realidade abstratamente (mesmo quando fosse correto proceder assim, porque o particular e fortuito formam parte da realidade e são opostos à abstração) e responder abstratamente a tais perguntas, é muito menos difícil que precisar o que significa o fato de que um certo algo seja uma realidade. O pensamento abstrato, com efeito, faz abstração desse algo, mas a dificuldade consiste precisamente em fazer a síntese desse algo e da idealidade do pensar, em querer pensar essa síntese. O pensamento abstrato não se pode ocupar de tal contradição, porque justamente ela perturba.
O impedimento do pensamento abstrato manifesta-se precisamente nos problemas existenciais, onde a abstração escamoteia a dificuldade e a deixa de lado; a seguir, vangloria-se de tudo explicar. Explica até a imortalidade, e, atentai para isto, tudo vai muito bem enquanto a imortalidade se faz idêntica à eternidade, essa eternidade que é essencialmente a disposição do pensamento. Quanto a saber se um indivíduo existente é imortal, onde justamente está a dificuldade, o pensamento abstrato não se ocupa disso. Ele é desinteressado, mas a dificuldade da existência consiste no interesse infinito que comunica à existência quem existe. O pensar abstrato ajuda-me, pois, a obter a imortalidade enquanto me suprime como indivíduo isolado, e imediatamente me faz imortal. Vem ajudar-me aproximadamente como fazia o Doutor de Holberg, o qual com seus remédios tirava a vida ao paciente — mas também suprimia a febre. Se consideramos, pois, um pensador abstrato que não quer esclarecer-se e confessar-se a si próprio qual é o comportamento do pensamento abstrato a respeito do fato de que ele é um homem que existe, não podemos deixar de sentir, seja ele o quanto famoso se queira, uma sensação cômica, porque está prestes a não ser um homem. Enquanto que um verdadeiro homem, síntese de finito e infinito, tem justamente sua realidade na manutenção dessa síntese e tem um interesse infinito na existência, o suposto pensador abstrato é, pelo contrário, um ser duplo: por um lado um ser fantástico que vive na pura abstração, e por outro talvez uma triste figura de docente que deixa a um lado aquele ser abstrato, como se deixa a bengala a um canto. Quando se lê a biografia de um tal homem (porque seus escritos podem ser dignos de atenção), sentimos às vezes um calafrio ao pensar o que, no entanto, é ser um homem (1). (…)
Pensar abstratamente a existência e sub specie aeterni significa suprimi-la essencialmente, e é análogo ao mérito proclamado a som de trombeta que consistiu em suprimir o princípio de contradição. A existência não pode ser pensada sem movimento, e o movimento não pode ser pensado sub specie aeterni. Deixar de lado o movimento não é prcisamente uma saída magistral, e introduzi-lo como passagem na lógica, e com ele o tempo e o espaço, nada mais faz que produzir uma nova confusão. Evidentemente, na medida em que todo pensamento é eterno, coloca-se uma dificuldade para o existente. Acontece com a existência o mesmo que com o movimento: é muito difícil qualquer trato com ela. Se os penso, já os aboli, e já não os penso. Assim poderia parecer correto dizer que há uma coisa que não se deixa pensar: a existência. Mas então subsiste a dificuldade de que pelo fato de que quem pensa existe, a existência é posta ao mesmo tempo que o pensamento.
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Na medida em que a existência é movimento, é necessário que haja, no entanto, algo de contínuo que unifique o movimento, sem o que, não haveria efetivamente movimento. Do mesmo modo que dizer que tudo é verdadeiro significa que nada o é, dizer que tudo está em movimento significa que não há movimento (2). O imutável pertence ao movimento como seu objeto e sua medida (ambos no sentido de telos e de metron), sem o que afirmar que tudo está em movimento, se se quiser também suprimir o tempo e dizer que tudo está sempre em movimento, equivale eo ipso a afirmar a imobilidade. É por esse motivo que Aristóteles, que de tantos modos fazia reaparecer o movimento, diz que Deus, ele mesmo imutável, faz tudo mover-se. Enquanto o pensamento puro suprime agora, sem mais, o movimento ou o introduz de maneira absurda na lógica, para o homem existente a dificuldade consiste em dar à existência a continuidade sem a qual tudo só pode passar e desaparecer. Uma continuidade abstrata não é continuidade, e a existência do existente perturba essencialmente a continuidade ao passo que a paixão é a continuidade momentânea que, ao mesmo tempo, retém e provoca a impulsão do movimento. Para um homem existente, a decisão e a “repetição” são o fim do movimento. O eterno é a continuidade do movimento, porém uma eternidade abstrata reside fora do movimento, e uma eternidade concreta no existente é o máximo da paixão. Toda paixão idealizadora (3) é, com efeito, uma antecipação do eterno na existência para aquele que realmente existe (4); obtemos a eternidade da abstração quando nos afastamos da existência; um homem existente não pode chegar ao pensamento puro a não ser por um começo duvidoso, o qual, ademais, vinga-se pelo fato de que a existência desse homem faz-se insignificante e seus discursos um tanto tresloucados. Assim acontece, em nossa época, com a maioria dos homens, entre os quais se ouve tão poucas vezes alguém falar como se fosse consciente de ser um homem individual existente. Quase todo o mundo vaticina panteísticamente falando de milhões de homens, de Estado e do desenvolvimento histórico mundial da humanidade. Para um homem existente, porém, a antecipação apaixonada do eterno não é a continuidade absoluta, mas a possibilidade de acercar-se à única verdade que há para um homem existente. Por aí, volta-se de novo a minha tese de que a subjetividade é a verdade, porque a verdade objetiva equivale para um homem existente à eternidade da abstração.
A abstração é desinteressada, mas a existência é o supremo interesse daquele que existe. Porque o homem que existe tem sempre um telos do qual fala Aristóteles quando diz (De anima, III, 10), que o noûs theoretikos é diferente do noûs praktikos to telei (v. praktike). (…) (Ausfsluttende uvidenskabelig Efterskrift, parte II, seção II, cap. III, § 1.)
(1) E quando pouco depois lemos em seus escritos: o pensar e o ser são uno, pensamos ao refletir em sua vida e em sua existência: o ser com o qual o pensamento é idêntico, sem dúvida não é o ser humano.
(2) É o que evidentemente queria dizer aquele discípulo de Heráclito, que dizia que não se podia atravessar uma vez o mesmo rio. Johannes de Silentio (em Temor e estremecimento) fez uma alusão à declaração deste discípulo, porém de maneira mais retórica que verdadeira.
(3) A paixão terrena perturba a existência na medida em que a transforma em algo momentâneo.
(4) Tem-se qualificado a poesia e a arte como antecipação do eterno. Se os quisermos nomear assim, ter-se-á que observar que a poesia e a arte não têm relação essencial com um homem existente, porque a contemplação da poesia e da arte, “a alegria do belo”, é desinteressada e o contemplador encontra-se exterior a si mesmo enquanto ser existente. [Kierkegaard]